Piauí lidera o ranking de mortes envolvendo motocicletas

16/01/2012 11h32


Fonte Fantástico

A reportagem especial do Fantástico deste domingo mostra como uma mistura explosiva, álcool e motocicleta, está tirando a vida de brasileiros. Sem preocupação com a própria segurança ou com a dos outros, eles bebem e pilotam motos pelas ruas e estradas do país. O problema é mais grave no Nordeste.

A vida por um fio sobre duas rodas: os números comprovam. A morte chega na velocidade da imprudência, do desrespeito às leis e da falta de fiscalização. O Brasil vive uma epidemia gerada por uma mistura mortal: álcool e motocicleta.

Todo fim de semana é assim: o vaqueiro Moisés Mesquita se encontra com os amigos para beber umas pingas e, no caminho de casa, ainda costuma parar para tomar a saideira.

Fantástico: Você está em condições de dirigir?
Moisés Mesquita: Daqui até o Rio de Janeiro. Só tomei só três doses.
Fantástico: O senhor tem habilitação?
Moisés Mesquita: Não tenho, não. A leitura é pouca.

Já se foi o tempo em que Moisés trabalhava como Zé Nilton, um dos poucos vaqueiros nordestinos que ainda se vê em cima de um cavalo no interior de Sergipe. Atualmente, a grande maioria deles não quer nem saber do animal. “Nós tínhamos uma média de oito cavalos. Agora, só temos dois”, contou o vaqueiro Antônio Marcos Lima.

Nos pastos do sertão nordestino, a paisagem mudou. Agora, o gado é tocado de cima da moto. A justificativa é que a gasolina é mais barata. “Você tem que dar ração, milho e tal. Na moto não. Você passa no posto, bota gasolina e manobra a semana inteira”, explicou o vaqueiro.

As concessionárias de moto nunca venderam tanto como nos últimos dez anos. Em 2001, a frota brasileira era de pouco mais de 4,6 milhões de motos. Hoje, passa de 18 milhões, quatro vezes mais.

O Nordeste é o maior mercado consumidor. No ano passado, comprou 35% das motos vendidas no país. Três estados lideram o ranking de mortes envolvendo motocicletas. No Rio Grande do Norte, correspondem a 42% das vítimas. Em Sergipe, 44%.

Mas é no Piauí que os números denunciam a tragédia: os motociclistas representam quase a metade das pessoas que morrem no trânsito. “Em grande parte, quase 90% dos acidentes com moto que chegam ao hospital, o álcool está envolvido. Não há dúvida”, afirmou neurocirurgião Daniel França.

É no fim de semana, entre a noite de sexta-feira e a madrugada de segunda-feira, que os acidentes se multiplicam no Piauí. Na região norte de Teresina, em uma rua que concentra muitos bares na calçada, tem muita moto também. Muitos nem disfarçam: em cima da mesa, estão garrafas, copos cheios e capacetes. “Minha moto está lá na frente”, disse o estoquista Cristiano Pinheiro. Outro motoqueiro revela que já tomou 12 copos de cerveja.

Em um dos bares, a equipe conheceu Vicente. Alegre e conversador, ele sentou à mesa quase embriagado. Vicente nem sabia mais contar as horas, mas sabia quantas cervejas tinha tomado. “Seis cervejas não me embebedam”, disse ele, mostrando a chave da moto.

Em Teresina, as barreiras da Lei Seca não assustam ninguém. Basta circular nos bairros da boemia da cidade para comprovar. À 1h30 da madrugada, em uma área movimentada da noite de Teresina, só em um pedaço da rua havia mais de 300 motos estacionadas. Os donos estavam em uma festa.

O vendedor Audivan Oliveira conta que já bebeu umas 20 cervejas e vai voltar de moto para casa. É difícil encontrar no local alguém que depois da farra não volte para casa guiando moto. Anderson Rodrigues, de 18 anos, não tem nem habilitação e reconhece que é perigoso voltar guiando a moto depois de beber tanto. Tentando justificar, ele chama o amigo para guiar o veículo. Os dois saem sem capacetes.

No Piauí, em média, três pessoas morrem por dia vítimas de acidentes com motos. No pronto-socorro de Teresina, o neurocirurgião Daniel França passou três anos desenvolvendo uma pesquisa com os pacientes. A conclusão é estarrecedora: “Os nossos números mostram que, dos pacientes vítimas de trauma de crânio que chegam ao Hospital de Urgência de Teresina, que é o hospital que drena todas as urgências do Piauí e parte do Maranhão, quase 70% são por acidentes de moto. Então, é uma média 700% superior à média mundial”.

Se na capital o problema é grave, no interior é assustador. A equipe foi até o município de Demerval Lobão, a 50 quilômetros de Teresina. Era dia de feira na cidade, dia de muito movimento nas estradas.

Com a ajuda de Gerônimo, que é mototaxista, a equipe pegou o caminho de uma comunidade rural em que o povo da roça costuma se divertir nos fins de semana. Atravessamos o rio em uma balsa movida a manivela e seguimos viagem.

O mototaxista, em sua moto sem placa, também é conhecido como paulista. Não demora muito e ele nos apresenta o primeiro bar do caminho. “É a segunda ou a terceira (pinga). Tomo uma para abrir os caminhos e o apetite”, disse.

Vamos em frente e encontramos mais um boteco de beira de estrada. Fazemos mais uma parada e o nosso guia vai direto ao balcão. “Estou trabalhando. Eu trabalho 24 horas por dia. Bebo, mas não perco o reflexo”, afirmou.

Não é isso que dizem os especialistas. O neurocirurgião José Weber, da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, desenvolveu um estudo para avaliar os efeitos da ingestão de álcool no cérebro. “Na medida em que a pessoa ingeriu o álcool, ela perde a capacidade de frear, de responder em tempo hábil. O tempo de resposta dela, que era para ser em torno de 0,75 segundos, vai para 2 segundos, 3 segundos. Então, ela está sujeita a um acidente”, explicou.

“Estou 100% para ir e vir. Já tomei umas cinco pingas e consigo ir e vir”, garante o mototaxista Gerônimo. O médico José Weber discorda: “Ele fica com o raciocínio lógico prejudicado. Fica com alterações da atenção. Não conseguindo focar naquilo que é importante para o cérebro trabalhar e, à medida que a ingestão vai aumentando, ele entra em um estado de alterações visuais, alterações do equilíbrio, alterações da coordenação motora”.

O nosso guia beberrão mostrou que nosso médico está certo. Ele tenta explicar para a nossa equipe o que sabe sobre o Código de Trânsito Brasileiro: “É conhecimento, é visão, que é a vista, previsão que é um escudo, habilidade, que é a cintura”. Depois de muitas paradas e muitos goles, ele voltou para a cidade.

Não há estatísticas de acidentes com motos na zona rural do Piauí. O que se sabe é que, na grande maioria dos casos, as vítimas estavam alcoolizadas. Basta visitar algumas comunidades para entender melhor o problema. A concentração de motos perto de bares da roça, em uma tarde de domingo, é grande.

Na comunidade de Vaquejador, a 70 quilômetros de Teresina, as famílias costumam se encontrar no único campo de futebol.

O motorista Francisco Carlos Bacellar tem 27 anos e mora na capital. Nos fins de semana, ele costuma visitar o vilarejo, para rever os parentes, os amigos e beber com eles. “Cheguei de manhã no bar e estou tomando uma. Vou sair daqui guiando a moto. Não acho perigoso, se não tiver um jumento, uma vaca para atropelar”, disse ele.

Quando o dia foi terminando, Francisco começou a se despedir. Ele se acha pronto para enfrentar a estrada: “Hoje eu bebi umas 38 cervejas. Só uma vez eu tive uma queda na estrada”.

Antes de partir, ele toma mais uma cerveja, enquanto a mulher vai pegar a bagagem. “Vou tomar uma aqui para não perder o ritmo. Se dormir, é pior”, afirma o motorista.

A noite chega, e o risco aumenta para desespero da mãe, dona Joana. Francisco monta na moto e, com a mulher na garupa, segue viagem. Até Teresina, muita curva e muito buraco no caminho.

A equipe segue a 60 km/h em uma estrada ruim e não consegue acompanhar Francisco. No asfalto, ele foi a 100 km/h. Mas ele deu sorte: conseguiu chegar em casa sem nenhum arranhão.

Infelizmente, não foi o que aconteceu com José Maria de Brito. Um percurso bem menor traçou o destino dele aos 28 anos e hoje está aposentado por invalidez. “De repente, uma S-10 cruzou a frente e eu me esborrachei. Tive traumatismo craniano. Eu estava a uns 100 km/h. Nesse dia, eu tinha bebido”, relembrou.

Mossoró, a maior cidade do interior do Rio Grande do Norte, proporcionalmente, tem a maior frota de motos do Brasil. Em cada quatro moradores, um é motociclista. E como no Piauí, na grande maioria dos acidentes, as vítimas estavam alcoolizadas.

O agricultor José Alves de Oliveira tinha acabado de sair de um bar, na zona rural, e está hospitalizado. Ele diz que não conseguiu desviar de outro motociclista que atravessou a estrada. “Ele estava bebendo e eu também. Ele morreu na hora”, contou. “Sempre que eu saio para beber, saio na minha moto, mas eu sempre saio devagar”.

As pessoas que sofrem acidentes de moto depois de beber levam grande desvantagem na hora da recuperação. Este é mais um dado da pesquisa que o Dr. Daniel França fez no Hospital de Urgências do Piauí. "Quanto maior a concentração de álcool no sangue, maior a gravidade do trauma", explicou.

Grave também é a liberdade que os motociclistas encontram nas ruas para cometer imprudências, em um estado que sequer sabe o tamanho da sua frota.

A cada dez motos que rodam no estado, sete são irregulares. Estes dados são do próprio Detran do Piauí, que tem apenas 25 fiscais para cobrir 224 municípios, incluindo a capital. Há quatro meses, a fiscalização foi suspensa. Um dos motivos é que o pátio que guarda veículos apreendidos não tem mais espaço para receber motos irregulares.

Mas, no interior, a fiscalização esbarra em outro obstáculo. O diretor geral do Detran do Piauí, José Antônio Vasconcelos, afirma que os fiscais encontram resistência da população e de políticos locais. “Os políticos não impedem a fiscalização, porque o estado pode mais. Mas eles não querem e criam obstáculos. Prefeito vai para a blitz e cria problema”, afirmou.

Não é só o Detran. No Piauí, a Polícia Rodoviária Federal também sofre pressão para não fiscalizar. “Esporádicas, mas por vezes sem êxito. As pressões são diversas, é uma questão cultural da região”, afirma Wellendau Ténorio, da Polícia Rodoviária Federal.

Durante uma operação da Polícia Rodoviária no município de Campo Maior, 40 motos foram recolhidas em apenas duas horas. Foi difícil encontrar alguém que estivesse em dia com as leis de trânsito. Um motociclista não tinha habilitação, estava transportando um passageiro sem capacete, e a moto dele não estava emplacada.

O Ministério da Saúde reconhece que o Brasil vive uma epidemia de mortes no trânsito. “Uma parte importante dos óbitos por moto, quase 80%, é de pessoas entre 15 e 39 anos”, afirmou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

São jovens como José Maria, Gerônimo, Francisco e Vicente. Por sinal, Vicente voltou para casa guiando a moto, depois de seis horas de bebedeira. Chegar ele chegou, mas sofreu um aci
dente.