Bruna Linzmeyer: "A sensação de quebrar uma heterossexualidade tão elaborada no mundo é maravilhosa"
29/05/2024 17h42Fonte Revista Marie Claire
Imagem: Bruna Castanheira/GrouPartBruna Linzmeyer comenta futuras estreias no audiovisual e compartilha visão sobre sua sexualidade.
"Faz tempo que não dou entrevistas longas, e estava pensando que para fazer isso você tem que ter certas certezas. Quais são minhas certezas do momento? Já mudei tanto de ideia – e já tentei tanto não mudar também”, diz Bruna Linzmeyer. Uma coisa é certa: a atriz de 31 anos nos brinda nesta entrevista com um punhado de certezas inspiradoras (mesmo que tenha mudado de ideia sobre elas na semana seguinte, quando teria levado nossa conversa para a terapia). Pois Bruna se mostra assim mesmo: vulnerável, mas firme, com um misto particular de autoridade e doçura. É com essa alquimia que ela cativa o interlocutor – seja falando olho no olho sobre feminismo e espiritualidade, aparecendo em um vídeo sem filtros nas redes sociais ou estrelando uma megaprodução nas telas do cinema ou da televisão.
Nestes, aliás, ela vem cheia de novidades: estreia em breve a série Máscaras de Oxigênio (não) Cairão Automaticamente, de Marcelo Gomes para a HBO; o curta-metragem Se Eu tô por Aqui é por Mistério, de Clarissa Ribeiro; e os longas Cidade; Campo, de Juliana Rojas, e Baby, de Marcelo Caetano. Com este último acaba de fazer sua terceira participação no Festival de Cannes (depois de O Grande Circo Místico em 2018 e Medusa em 2021). “O filme conta a história de um menino que sai da Febem e se depara com um abandono familiar, e o encontro com a minha personagem é um ponto de acalento, um respiro na história”, diz.
Do extenso currículo, ela destaca uma atuação especial: a personagem autista Linda, da novela Amor à Vida (Globo, 2013), que considera um momento crucial na carreira. Mas o ponto decisivo mesmo foi outro: “Me entender como sapatão. Foi um momento de virada com o público, que passou a me enxergar com outra camada. Foi tão importante ter falado disso quando ninguém ainda o fazia. Eu estava vulnerável e aquilo me aproximou das pessoas, que puderam me enxergar sem barreiras, de uma forma muito bonita”. A seguir, ela revisita o momento de autopercepção da sexualidade, analisa a cena audiovisual brasileira contemporânea, reflete sobre o medo de envelhecer e o desejo pela não maternidade e divide seu maior sonho.
MARIE CLAIRE: Se pudesse dar um conselho para a Bruna do início da carreira, qual seria?
BRUNA LINZMEYER: Fica tranquila. Segue aí. E aproveita. Não deixa a correria do mundo, a ansiedade dos dias, o esquema estrutural do trabalho – as pequenas coisas que às vezes nos engolem – roubarem sua calma.
MC: Máscaras de Oxigênio (não) Cairão Automaticamente é inspirada em uma história real sobre a aids no Brasil dos anos 80. Como foi mergulhar nesse tema?
BL: Duro, mas emocionante. A história é baseada no comecinho da epidemia, quando o único medicamento que existia era proibido no Brasil, e alguns comissários de bordo o contrabandeavam e salvaram vidas. O tema ainda é um tabu, né? Muita gente morre de aids só por preconceito e falta de informação, porque já temos um tratamento adequado. Estou curiosa para ver como a série será recebida no Brasil de hoje.
MC: Certos produtos da arte despertam incômodos em uma parte mais conservadora do país. Como vê essas reações?
BL: É interessante esta pergunta porque tenho sentido que estamos em um momento concreto do mundo. Falta um pouco de poesia, falta sustentar o paradoxo – algo que a arte propõe muito. Outro dia postei um trecho do curta Uma Paciência Selvagem me Trouxe até Aqui [2021], em que minha personagem e a da Zélia [Duncan] se conhecem, flertam, e ela oferece uma carona de moto e dá o capacete à minha personagem. Muita gente comentou: “Que absurdo a Zélia sem capacete”. Justo, usem capacete. Mas isso é um filme! Não é uma notícia de jornal. Temos perdido a capacidade de ver o que não está explícito, o que não está dito com todas as palavras. Isso demanda imaginação, repertório, autoconhecimento. Outro exemplo: pessoas importantes da minha família, as que mais amo no mundo, votam na extrema direita. São doces, que fecham a churrasqueira porque percebem que um bem-te-vi está fazendo ninho no topo dela. E votam na extrema direita. Você consegue sustentar esse paradoxo? Sem escolher “é isto ou aquilo”? É desconfortável, mas é importante conseguirmos, senão nada nunca vai durar.
MC: Como avalia o impacto do streaming na sua profissão?
BL: Temos uma diversidade de trabalho maior, mas, ao mesmo tempo, os trabalhos feitos no Brasil passam por uma aprovação gringa e os direitos autorais são estadunidenses. Acho bom que existam grandes empresas que tragam dinheiro, mercado e movimentem a indústria no Brasil, mas é importante que não engulam nosso audiovisual autoral e independente. Precisamos preservar esse espaço de experimentação, e isso se faz por meio de leis.
A sensação de quebrar uma heterossexualidade tão elaborada no mundo é maravilhosa"
— Bruna Linzmeyer
MC: Como avalia a diversidade no audiovisual brasileiro?
BL: Péssima. A quantidade de mulheres realizadoras ainda é menos de 50%. Apenas uma ou duas mulheres negras realizaram longas-metragens nos últimos dois anos. Mas, para não ser muito pessimista, temos feito um cinema cada vez mais profundo. O cinema brasileiro é forte porque somos um povo criativo, inteligente. Tanto que estamos presentes nos grandes festivais, ganhando prêmios, como o do Festival de Berlim com Cidade; Campo.
MC: Esse filme tem uma cena de sexo lésbico que você descreve como ousada. Como isso pode contribuir para ampliar, ou ao menos normalizar, o diálogo sobre diversidade sexual?
BL: Acho que tem a ver com nossa capacidade de imaginar. É uma parada neuroquímica. Vemos uma quantidade imensa de coisas todos os dias, mas o cérebro escolhe o que fica registrado. Há imagens que não estamos acostumados a ver, então como vamos imaginá-las e respeitá-las quando acontecerem na nossa frente? Cenas como essas têm o poder de semear e povoar imaginários, para que possamos nos enxergar amando corpos diferentes, de formas diferentes.
MC: Você se posiciona publicamente com muita clareza em relação às causas LGBTQIA+. Qual é a importância de pessoas públicas trazerem isso à luz?
BL: Aconteceu de um jeito que não necessariamente escolhi, mas fui sentindo o impacto de falar, ouvir, trocar. Ao longo do tempo precisamos usar definições muito concretas para conseguir nos comunicar, lutar por direitos, por licença-maternidade para duas mães, por exemplo. Mas a identidade é um rio, ela flui, não é fixa. Essas imensas possibilidades sempre me encantaram. Me interessa o trânsito. O movimento, a fluidez. Na comunidade LGBTQIA+ cabe o que é estranho, o que não tem forma, o que as pessoas não sabem direito expressar ou definir.
MC: A palavra “sapatão”, que você usa bastante, por muito tempo teve uma conotação pejorativa. Qual a importância de se apropriar dela?
BL: Quando conheci a Zélia [Duncan], ela não conseguia falar essa palavra. Era algo com que a ofendiam muito. Ao final das filmagens, ela escreveu uma carta superbonita sobre como passou a dizê-la após conviver com tantas de nós, sapatões. Tem uma identificação, um pertencimento. É uma palavra nossa. Não é de mais ninguém. Quando a pessoa te xinga e você responde: “É, eu sou, e aí?”, você a desautoriza, tira o poder dela.
“O que me encanta nesta comunidade é a flecha que colocamos no meio da dor e que a atravessa e transforma."
MC: Como foi sua autopercepção da sexualidade?
BL: Eu já tinha 22 anos, mas hoje consigo olhar para trás e perceber que isso sempre esteve lá. Inclusive aquela melhor amiga talvez fosse uma namorada, sabe? Talvez eu tenha demorado um pouco a nomear e a entender. Uma pena. Mas agora está maneiro. Deu certo.
MC: Houve uma aceitação imediata por parte da sua família?
BL: A época em que eu estava começando a ficar com mulheres, meu irmão estava começando a ficar com homens, depois de um casamento de 11 anos com uma mulher. Trocamos muito sobre isso. Fala? Não fala? Como fala? Quem fala? E ele falou primeiro e eu em seguida. Não foi extremamente fácil. Lembro do meu pai falar: “Não era isso que eu esperava, mas se você está feliz, eu estou feliz”. Meus pais moram em uma cidade pequena e foram entendendo o impacto disso na comunidade. Foram eles que tiveram que segurar a bronca, ouvir comentários no mercado, receber trote em casa. Foi uma jornada, mas tudo foi se ajustando.
MC: Você já teve relacionamento aberto. Foi uma experiência positiva?
BL: Se relacionar de maneira profunda com alguém é louco para caceta! Traz vulnerabilidade, coloca medos à mostra. Não sei nem como fazemos isso, é muito intenso. E tem todas as questões culturais construídas do que é certo e errado, algo muito entranhado em nós. Então, independentemente de ser uma relação monogâmica ou poligâmica, o cuidado e o respeito devem ser constantes e os acordos revistos o tempo todo. Não é porque acordamos que todo dia jantaremos juntos que vai dar para ser assim. É um trabalho que demanda muita escuta, do outro e de si. Tem que estar atento e ter cuidado e carinho com os seus processos.
MC: Você cansa de ser indagada sobre sua sexualidade?
BL: Não, porque isso é muito presente na minha vida e no meu trabalho. O ponto talvez seja como avançar nas perguntas e nas respostas. Às vezes penso que estou falando as mesmas coisas há cinco anos. Como trago um elemento novo para isso? Novo para mim mesma – como o que eu trouxe do trânsito, algo que pensei nesta semana. Mas teve uma época em que fiquei cansada porque me perguntavam muito sobre a parte dolorida: o preconceito, os trabalhos que perdi, como foi difícil. O que mais me encanta em pertencer a essa comunidade é justamente a flecha que colocamos no meio da dor e que a atravessa e a transforma. É a capacidade da poesia e do paradoxo que essa comunidade tem. A sensação interna de se reconhecer, pertencer e conseguir quebrar uma heterossexualidade tão elaborada no mundo é tão genuína e maravilhosa que nenhum preconceito é capaz de diminuir essa alegria. Mas como falamos sobre isso? Isso vende? Conseguimos construir um contraponto para que as histórias não sejam só sobre dor?
“Na comunidade LGBTQIA+ cabe o que é estranho, o que as pessoas não sabem expressar ou definir."
MC: O que você faz para cuidar da saúde mental?
BL: Muito exercício físico. De todo tipo. Natação no mar, ioga, muay thai, bicicleta como meio de transporte – devo andar 15 quilômetros por dia. É análise, sem dúvida.
MC: Você já sofreu lesbofobia de um terapeuta, né?
BL: Sim, em 2018. Levei muitos anos para me recuperar desse trauma. Ainda bem que não desisti da psicanálise. Penso na metáfora de que deve ser muito legal ser jardineiro e ter um jardim lindo, mas essa é só a parte final do trabalho. Você tem que estar lá todo dia, arando, podando, fertilizando. O trabalho é árduo e diário. É muito legal fazer filme e ir a festival, mas essa é uma parte pequena. O ofício da atuação é o que me mantém presente. Talvez eu nem goste tanto assim de ver o filme pronto. Gosto da pesquisa, do pavor que sinto quando recebo o roteiro, de entender onde a personagem existe nas pessoas que conheço, do set de filmagem, do caos do camarim. Meu maior exercício de saúde mental é preservar o prazer da feitura diária das coisas. Como estar aqui conversando, sabe? Tomei um banho, fiz um chá, sentei e tenho prazer em conversar com você. E sua escuta me faz pensar em coisas novas.
MC: Como é seu lado espiritual?
BL: Profundo. Metade da minha família trabalha com isso. Tenho uma bisavó de 98 anos que é uma das maiores benzedeiras de Corupá, lê a mão com lupa. Minha família não tinha dinheiro para irmos ao médico, então íamos na dona Anita – vou até hoje. Minha tataravó era benzedeira e minha mãe e tia também trabalham com isso. E eu fui coroinha! Amava. Acordava cedo no domingo e chegava antes de todo mundo na igreja. Então tenho uma relação muito presente com a espiritualidade. Acredito que ela seja uma linguagem com a qual conseguimos nos relacionar com o mundo.
MC: Você se percebe como uma mulher bonita?
BL: Sim, mas não de forma constante. Tem altos e baixos. Por ser uma mulher branca, magra, de olho azul, sempre ouvi que era bonita. Quando criança, ficava chateada com isso, me sentia invadida. Falava para a minha mãe: “Por que as pessoas falam do meu olho o tempo todo?” Para uma criança é chato. Uma criança não precisa ser bonita, precisa ser criança. Mas acredito em uma beleza para além do físico – e é óbvio que talvez seja fácil para mim falar isso porque estou dentro de um padrão. Mas uma pessoa pode ser linda porque está feliz, sendo reconhecida, gozando gostoso [risos]. Isso independe do tamanho do nariz ou do cabelo que ela usa. É uma beleza que vem da autoconfiança.
MC: Você tem medo de envelhecer?
BL: Penso muito sobre isso. Como vou envelhecer de forma física e psicologicamente agradável para mim mesma é um trabalho que começa agora. A pressão social é gigante, deve ser desestabilizador, então preciso cuidar da minha cabeça. Muito do trabalho que eu faço, que você faz, que a Marie Claire faz é para que daqui a 30 anos estejamos envelhecendo um pouquinho mais tranquilas.
MC: Como é sua relação com a maternidade?
BL: Desde criança falo que não quero ser mãe. Acredita? Agora acham que não quero ser mãe porque sou sapatão. Não tem nada a ver. Eu nunca quis, e é louco que isso ainda surpreenda. Mas tenho uma relação muito legal com criança, bato o maior papo com essa galera.
MC: Você postou recentemente um vídeo mostrando pelos nas axilas que recebeu vários comentários indignados. Mostrar-se assim é um ato feminista?
BL: Acho que um ato feminista envolve coisas mais graves. A grande questão do feminismo é que estamos morrendo. Por feminicídio, por tentar fazer abortos ilegais, morrendo por dentro porque estamos ficando velhas e não nos sentimos mais bonitas ou não merecemos mais um emprego. Quando penso em feminismo, a questão maior é sobre morte, física e simbólica. Como nos vestimos faz parte dessa cultura que pode culminar em uma morte? Faz. Mas é algo pequeno quando falamos de luta feminista.
MC: Você tem mais de 2 milhões de seguidores no Instagram. Como constrói sua imagem nas redes?
BL: Lá a conversa é direta, não tem interlocutor, e isso é superinteressante. Tento compartilhar conversas que teria com meus amigos, como se fosse uma extensão de uma rede de afeto. E recebo muita mensagem maneira, do tipo: “Nossa, posso repensar o meu próprio corpo através do seu”. É um exercício, enquanto alguém seguida por muitas pessoas, pensar o quanto posso fazê-las refletir.
MC: Qual é o seu sonho?
BL: Saber curtir cada coisa que está acontecendo, com cada pessoa que passa pela minha vida. Isso é um sonho, que louco, né? Aproveitar as coisas ordinárias da vida enquanto conquisto as extraordinárias, gigantes, mirabolantes. Sem perder o afeto, a doçura e a poesia pelo caminho, protegendo a magia do dia a dia.
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