Com a carreira a mil, Alice Wegmann recusa rótulos: "Nunca namorei mulher, mas beijei"
08/10/2023 10h06Fonte O Globo
Questionada sobre qual a principal característica de sua geração, Alice Wegmann precisa de poucos segundos para encontrar a resposta: “É aquela que descobriu poder ser milhões de coisas”. No caso da atriz, de 27 anos, isso se aplica a aspectos variados da vida. Vai da maneira como experimenta a profissão e prospecta o futuro à forma como constrói as relações afetivas. “Por isso, não gosto de caixinhas”, sentencia.A análise é feita diretamente de Goiânia, ao longo de uma hora e meia de chamada de vídeo, depois de um dia de gravações da segunda temporada de “Rensga hits!”. O próprio trabalho como protagonista da série do Globoplay tem a ver com essa perspectiva diversa. Afinal, para dar vida a Raíssa, cantora que busca o sucesso no sertanejo, a atriz fez aulas de canto e violão. E, sim, não descarta uma incursão mais profunda na música. “Não sou cantora, sou uma atriz que canta um pouco”, reconhece. “Mas já compus algumas letras e gosto de escrever. Pode ser que, em algum dia, queira botar isso em prática.”
São possibilidades de uma jovem acostumada também às acrobacias. Alice começou a fazer ginástica olímpica ainda menina e, desde então, flutua em pleno voo livre numa trajetória ascendente. “Comecei com 3 anos. Aos 4, já era federada e competia, o que exigia responsabilidade”, conta. Dessa época, ela se lembra de acordar às 6h e treinar até o meio-dia. Almoçava em poucos minutos e corria para a escola. Aos 11, trocou a ginástica pelo teatro, e seguiu com a agenda lotada, entre estudos, ensaios e apresentações.
A disciplina rigorosa a possibilita estar, neste momento, envolvida em quatro produções, com lançamentos previstos para o próximo ano. Além de “Rensga”, faz parte dos elencos do filme “A vilã das nove”, de Teo Poppovic, e das séries “Justiça” 2, do Globoplay, e “Senna”, da Netflix. Nesta última, interpreta Lilian, a única mulher com quem o piloto de Fórmula 1 se casou. “A verdade é que não sei como é a vida sem trabalho”, afirma, sobre a quantidade de projetos simultâneos. “Quando tirei férias pela primeira vez e parei por três meses, fiquei deprimida. Não sabia o que fazer com tanto tempo livre.”
Imagem: Jorge BispoAtriz conta como conseguiu mostrar mais o corpo com o passar do anos.
O corpo fala
O preparo físico pregresso, porém, não impediu que o corpo disparasse alertas. O mais ruidoso deles soou durante as gravações da supersérie “Onde nascem os fortes”, lançada em 2018 pela TV Globo. “Meu coração bateu a 31. Fui parar numa UPA, tomei duas doses de atropina, para dar uma adrenalina, e tive reação alérgica”, narra. O quadro fez com que a mãe da jovem pegasse um voo para Campina Grande, na Paraíba, estado onde a trama era gravada. Ao chegar lá, ela ouviu o médico dizer que teve medo de perder a paciente. “Acho que isso se deu, principalmente, pela intensidade do meu envolvimento emocional com o trabalho. Ali, entendi a importância de estar atenta aos sinais do corpo.”
Recuperada, seguiu em frente com o papel de Maria, ganhou notoriedade pela interpretação visceral e chamou a atenção de veteranos, como Patricia Pillar, que fazia Cássia, mãe da personagem naquela história. “Alice é corajosa, extremamente sensível e muito estudiosa. Fico feliz em ver seu trabalho evoluindo ainda mais a cada dia”, elogia a colega de elenco.
Mas, daquele momento em diante, a novata começou a erguer uma estrutura capaz de assegurar a saúde física e mental. Tem uma analista que a acompanha, começou a fazer ioga e boxe, enquanto mantém um contato estreito com os amigos mais íntimos. “Volta e meia, faço uma chamada de vídeo e peço ajuda. Às vezes, você só precisa chorar. E eu deixo vir. Estamos lidando com muitas coisas ao mesmo tempo, e aprendi a viver um dia de cada vez. Se pensar no tanto de trabalho que tenho pela frente, entro em desespero.”
A mesma rede a ajudou a superar distúrbios alimentares. Um problema que só aumentava diante das pressões no ambiente profissional, como um diretor que, ao aprová-la num teste, aos 15 anos, apenas pediu que emagrecesse, em vez de parabenizá-la. “Eu me lembro de usar uns pós industrializados para fazer muffins e panquecas e adotar umas dietas cetogênicas fortes. Aí, quando voltava a comer carboidrato, engordava muito”, recorda-se. “Como era tudo muito restritivo, gerava compulsão alimentar. Então, entendi que manter uma dieta rica em todos os alimentos permite a você comer um brigadeiro na terça-feira e não 20 no sábado.”
O desempenho de Alice diante das câmeras a posicionou, de modo permanente, no campo de visão de autores badalados. É o caso de Manuela Dias, que escreveu tanto “Justiça” 2 quanto a minissérie “Ligações perigosas” (2016), outro sucesso da TV Globo com a jovem no elenco. “Além do trabalho individual, ela é uma parceira que soma no conjunto”, diz a autora. “É madura e determinada. Uma atriz que quero sempre por perto.”
No radar
Por outro lado, o mesmo reconhecimento a conecta a personagens imersos em tramas sensíveis e, por vezes, violentas. Em “Justiça”, a atriz interpreta Carolina, uma jovem abusada pelo próprio tio, Jaime (Murilo Benício), e encarou uma cena de abuso logo no primeiro dia de filmagens. “Na manhã seguinte, o meu corpo inteiro doía, e eu não sabia de onde vinha aquilo. Mal sabemos, mas fica guardado, de alguma forma. É inconsciente.”
A reação, contudo, vai além da entrega ao papel, visto que Alice conhece, de modo íntimo, esse tipo de situação. “Já fui abusada, vivi várias formas de violência física, sexual e verbal”, conta. “Então, essa luta também é minha. Mesmo que não tivesse passado por isso, seria. Mas, o fato de ter sofrido aumenta o meu apego por batalhar por espaços melhores para as mulheres.”
Ela afirma que ainda não se sente preparada para entrar em detalhes sobre os episódios particulares, mas reconhece que abordar o assunto publicamente ajuda outras pessoas. “Sei que muitas mulheres ainda não descobriram (que passaram por isso). Eu mesma só tive essa compreensão lendo livros e vendo entrevistas de outras vítimas”, afirma.
Ter a consciência disso, comenta, foi fundamental para virar algumas chaves, como a do transtorno alimentar, que acredita estar associado a esse histórico. Do mesmo jeito, desenvolveu uma relação melhor com o corpo e conseguiu exibi-lo mais, embora faça questão de frisar que posar nua para este ensaio não deve ser lido com um ato de feminismo. “Empoderamento não é ficar nua, mas existe uma conquista minha”, ressalva. “Diante dos abusos que vivi na adolescência, passei a vestir muitos casacos e roupas de manga comprida. Tinha vergonha de usar regata. Quando você se conhece e descobre o seu poder, aprende a gostar mais de si e do seu corpo. É uma consequência, uma libertação.”
Amizades plurais
A consistência nas falas e nos pensamentos diante de assuntos tão complexos tornam a jovem capaz de circular por diferentes rodas, algo fundamental para alguém que dá tanto valor às amizades. Idealizador do Prêmio da Música Brasileira, Zé Mauricio Machline é um dos melhores amigos da atriz e observa como isso acontece na prática: “Ela consegue ser melhor amiga da minha caçula, de 29 anos, da minha filha do meio, de 39, e de mim, que tenho 66. Temos uma troca e uma identificação que tive com poucas pessoas ao longo da vida”.
Mas o repertório da atriz tampouco se restringe aos círculos mais íntimos. Alice já usou as redes para se posicionar a favor da descriminalização do aborto e, nas eleições passadas, apoiou o candidato Lula, o que lhe rendeu a famigerada pecha de “socialista de iPhone”, da qual acha graça. Sem baixar a guarda, defende que o momento é de cobrar novos avanços do governo atual. “Política se faz no agora e não de quatro em quatro anos”, diz. “Tem muitas coisas que precisam ser melhoradas.”
O posicionamento, garante, nunca lhe rendeu retaliações no âmbito profissional. Ela afirma que “custoso seria esconder minhas opiniões e meus valores” e diz ter uma boa relação com os contratantes. “Durante muito tempo, tive resistência em fazer publicidade por medo de não soar verdadeiro. Mas, conforme você vai se conhecendo e entendendo o que quer comunicar, encontra marcas com as quais faz sentido firmar parceria.”
Coerência que leva também para o campo pessoal. Solteira, nutre boa relação com os ex-namorados, incluindo o último deles, Dudu Borges, compositor das canções de “Rensga hits!”. “As pessoas com quem me relacionei são interessantes e as admiro muito, em sua maioria”, diz. E, já que é para viver um dia de cada vez, a máxima soa como um mantra na vida afetiva. “Está bem difícil para a mulher hétero”, ironiza, contando já ter desbravado outros campos. “Nunca namorei mulher, mas beijei. Naquele momento, não me bateu tanto. Mas, pode ser que acorde um dia e fale: Quero pegar essa mulher. Se acontecer, vou viver isso.”
A maternidade, afirma, é um plano a ser posto em prática, mas sem qualquer ansiedade. “Já conversei com meu ginecologista para congelar óvulos. Quero trabalhar e viajar muito ainda”, salienta, sobre a atitude que pretende tomar dentro de alguns anos. Até lá, precisa lidar com outro dilema da geração: a dificuldade em entender o lugar dos relacionamentos. Algo que afeta principalmente as mulheres, na opinião dela. “Não sou anti-homem, mas estou cada vez mais exigente. Temos independência financeira, vibradores. Estamos trabalhando, gozando. Estamos felizes. Então, pensamos mais sobre o quanto vale a pena ter um cara do nosso lado.”
O sarrafo, avisa, está bem alto e não há tempo a perder: “O mundo é muito grande para uma vida tão pequena”.
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