Ney Matogrosso: "Sempre fui um espinho atravessado na garganta do meu pai"
25/09/2019 14h39Fonte Revista Marie Claire
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Era inverno de 1973. Durante 55 minutos, três homens com rostos pintados ocuparam o palco do Teatro Itália, em São Paulo, fazendo música de uma maneira que o Brasil nunca havia visto. No centro da cena, uma figura esguia ondulava o corpo praticamente nu desafiando o regime militar ditatorial vigente à época. À frente do Secos & Molhados, a imagem andrógina de Ney Matogrosso trazia a discussão de gênero a um país sem voz, massacrado pela censura. A história do grupo que durou um ano e bateu todos os recordes de venda da época está no livro Primavera nos dentes (Editora Três Estrelas, 376 págs., R$ 69,90), de Miguel de Almeida. Marie Claire conversou com o líder da banda sobre sexualidade, política, OVNIs e arte.Marie Claire: Sua figura, nos Secos & Molhados, colocou a androginia dentro de todos os lares do Brasil. Foi proposital?
Ney Matogrosso: Nem pensava nisso. Não estava preocupado com androginia ou não androginia. O que não queria era ser simplesmente um crooner de banda. Queria ser outra coisa, ter liberdade e, ao mesmo tempo, conseguir andar na rua. Porque ouvia falar que artista não podia na rua na rua e não queria isso para mim.
MC: Era então uma proteção?
NM: Sim! E, paradoxalmente, na hora em que tapei minha cara, fiquei nu. Adquiri uma coragem de exposição física que não sabia que existia em mim. Quando via as primeiras fotos do Secos & Molhados, pensava: “Mas esse não sou eu!”. Parecia que um outro tinha me ocupado. A psicanalise explica isso. No momento em que você não tem rosto, você não é ninguém.
MC: Você não tinha essa coragem?
NM: Eu era uma pessoa muito problemática com meu corpo. Naquela época já bem menos, mas fui uma criança enrustidinha, ficava ali no cantinho desenhando, com vergonha de tudo, de mim. Na adolescência, não havia hipótese de eu tirar a camisa na frente de alguém. Me achava um ser horroroso, vivia com a mão no bolso, porque tinha vergonha das minhas mãos, dos meus pés, das minhas pernas. Não queria que ninguém me visse.
MC: Quando isso começou a mudar?
NM: Quando fui para o quartel. Ali, eu tinha que tomar banho na frente de 20 homens e entendi que seria um problema com eles. Se não tirasse a roupa naquele lugar, minha vida ia virar um inferno. Aí comecei a notar que tirava a camisa e ninguém me apontava como monstro...
MC: Como é hoje?
NM: Tenho a consciência de que eu não tenho um corpo perfeito, mas mostro como se fosse. E aí é muito louco porque as pessoas acreditam.
MC: Em que lugar está hoje essa insegurança?
NM: Não tenho mais. Eu tinha uma negação de pai que carreguei por muito tempo porque não tinha a consciência de que aquilo existia. Sempre fui um espinho atravessado em sua garganta sem eu nem saber por quê. Ele me perseguia. Até que, na época em que tomava Daime, tive uma memória absurdamente reveladora. Lembrei que, quando tinha 6 anos, ele me chamou de viadinho. Não entendi nada, nem sabia o que isso queria dizer. Aos 13, fez isso de novo. Só que aí eu já sabia responder e disse: “Não sou, não. Mas quando for, o Brasil inteiro vai saber”. Por isso, passei muito tempo sem saber receber amor. Já era famosíssimo e ainda carregava isso comigo. Eu me fechava quando me aplaudiam. Eu não sabia receber. Transar tudo bem, mas nunca existia uma segunda vez. Agora, eu me abro. Eu já chego aberto.
MC: Seu pai assistiu o Secos & Molhados?
NM: Não. Ele me viu anos depois, quando fiz um show no Matogrosso. Tomou um remédio para o coração e foi me ver com a minha irmã. No fim do show, disse a ela: “Achava que era outra coisa, o Ney é um grande artista”. Quando chegou em casa, botou meu disco nas alturas para os vizinhos ouvirem. Mas nunca me disse nada, soube tudo isso pela minha irmã.
MC: O momento político foi determinante para vocês se apresentarem daquela maneira?
NM: Sim, porque eu odiava a ditadura. E, naquele momento, você tinha duas alternativas: ou pegava em armas ou se submetia. Como eu não tinha o menor talento pra pegar em armas, usei minha libido como arma.
MC: Que paralelo político faz daquele período com o que estamos vivendo hoje?
NM: Não digo que seja a mesma coisa, mas podemos estar caminhando para um momento tão severo como o da ditadura.
MC: Ainda hoje, o Secos & Molhados é muito mais transgressor do que a maioria das coisas que aparecem na cena artística. Na sua opinião, o que atrasou essa evolução?
NM: A Aids. Não sei onde estaríamos hoje se não houvesse a doença. Nós vínhamos numa evolução estonteante! E ouso dizer que essa doença pode ter sido manipulada pelos americanos. Porque, nessa época, os gays dos Estados Unidos já estavam elegendo governadores, o que era uma ameaça paro o status quo da América. Quem fez uma bomba atômica e jogou sobre duas cidades matando milhões de pessoas não vai criar um vírus? Só que eles achavam que a Aids matar mais rápido do que matou, então deixou de ser conveniente.
MC: Nunca pensou em voltar com o Secos & Molhados?
NM: Recebemos milhares de propostas, mas nunca aceitei. E me oferecerem muito dinheiro, tá? Uma vez, o governo de São Paulo me ofereceu 5 milhões para a gente fazer uma única apresentação. Eu disse: “Muito obrigado”. Não é o dinheiro que me move. Minha vida seguiu, por que voltaria para trás?
MC: Com o que se identifica na cena musical atual?
NM: Não sei, porque mudou muito. Venho de uma coisa mais consistente, a qualidade do que é feito é outra. Não estou falando mal, mas a música se enveredou para um outro rumo. Por exemplo, acho o funk como ritmo uma delícia, mas é tudo muito grosseiro. Me chocou ver as mulheres dançando em cima de uma garrafa, achava aquilo absurdo.
MC: Mas sua sexualidade também era explicita no palco.
NM: Só que ela nunca fui grosseira. Sempre ousei, mas sempre soube o limite da vulgaridade. E nunca dei esse passo.
MC: Você sempre foi bissexual assumido. Por que você nunca quis ser porta-voz da causa gay, como o David Bowie era nos Estados unidos na mesma época.
NM: Eu já era excessivo. Sempre defendi a causa, mas não acho que tenha que ser um porta-estandarte. Já sou o próprio estandarte! E não só disso. A situação dos negros é dramática no nosso país, a dos índios é assombrosa. Se eu assume isso naquela época, seria muito conveniente para o governo. Iam dizer: ele é gay e ponto. E eu sou mais, incomodo mais.
MC: No livro, sua figura é descrita como um ser que não era homem nem mulher nem bicho.
NM: Era mais para inseto. Porque eu botava antenas, me enchia de enfeites. Depois, no [show] Homem de Neanderthal botei chifres nos ombros como captadores de energias negativas.
MC: Acredita em disco voador?
NM: Não é questão de acreditar ou não. Eu já vi. Mais de uma vez.
MC: Como é?
NM: Uma vez, vi passar uma bola verde na frente do meu sítio. Era uma lua cheia cor de esmeralda, que passou e deixou um rastro no céu. E não sumiu no horizonte, mas dentro do próprio círculo. Foi para outra dimensão, atravessou.
MC: Você estava sóbrio?
NM: Totalmente. E tinha mais três pessoas comigo. Quando morei em Brasília, passava as noites nas ruas ficava procurando discos voadores. Porque lá eles desciam, se comunicavam. Uma vez, estava no camarim me arrumando, com 80 mil pessoas esperando pelo show, e vieram me chamar. Tinha uma lua cheia no meio do céu de onde saíam luzes azuis, vermelhas... Todo mundo viu. No dia seguinte, disseram nos jornais que se tratava de um balão meteorológico. Pra cima de mim?
MC: Que forma têm os extraterrestres que você viu?
NM: Tem vários tipos. Tem os das trevas, que não tem emoção. Os piores se alimentam das emoções negativas, olha que prato cheio esse planeta para eles. Agora, tem os maravilhosos, evoluídos... O ser humano acha que é o ápice da criação. Que ápice é esse que não respeita o seu planeta? O organismo vivo sobre qual vivemos! Que destrói o seu habitat, que não respeita o ambiente em que vive. Porque a natureza não tem ódio, mas ela se defende e já está dando indícios de que estão sendo sinais evidentes de que está sendo muito perturbada. E nós vamos pagar o preço. Infelizmente os inocentes pagarão pelos culpados.
MC: Usa drogas?
NM: Sempre experimentei tudo que me interessou. Cocaína não gostava, também não bebo. Tomei 20 LSDs antes do Secos & Molhados, depois não tomei mais droga nenhuma porque achava que não podia misturar. Meu vício era sexo e mandrix, que me deixava liberado, solto, carinhoso, tudo que eu não era.
MC: E hoje?
NM: Hoje não existe mais nada puro. Se tivesse, eu tomaria LSD. Para mim, abriu as portas da percepção mesmo. Tomei a primeira vez em uma praia em Búzios. Lembro de pegar a areia, olhar as flores azuis e falar: “Eu não sou mais do que isso!”. Aí entendi Deus, a criação. É a vida que se manifesta. A pedra está viva. Água, pedra, terra... Tive sessa percepção e não me perdi nela.
MC: De alguma maneira, ainda se sente hippie?
NM: Meu espírito é totalmente hippie. Sou paz e amor, não sou consumista... Piso no planeta com o maior respeito e a consciência de que ele nos transporta nesse universo, que ele é um organismo vivo. As águas... Nossa! Quer luxo maior?
MC: Mas aprendeu a guardar dinheiro?
NM: A poucos anos comecei a pensar nisso. Porque vou ter que parar em algum momento, e não vou pro retiro dos artistas porque eu não mereço. Trabalho demais pra isso.
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