Vera Fischer relembra carreira e romances: "Depois dos 70 as coisas mudam"
02/02/2025 11h18Fonte O Globo
Uma neblina espessa paira sobre Copacabana numa tarde de dezembro. De frente para o mar, na varanda de um hotel cinco estrelas, Vera Fischer toma um café, mira o céu e diz: “Acho que estou num momento de transição, pensando loucamente em algo novo. Por enquanto, está meio foggy (enevoado), como lá fora. Às vezes, você não vê nada no horizonte. Mas, quando o nevoeiro se vai, enxerga.”Um mês depois, as novidades chegam em áudios entusiasmados via WhatsApp. “Estou ensaiando a peça “O casal mais sexy da América”, avisa, sobre a produção dirigida por Tadeu Aguiar, com estreia prevista para abril. Escrito pelo americano Ken Levine, o texto conta a história de dois atores com mais de 60 anos que fizeram, nos anos 1990, um seriado de sucesso na TV. Eles se reencontram no funeral de um colega de elenco, onde assuntos do passado e do presente, como assédio e etarismo, vêm à tona.
Especialmente latentes no meio artístico, os temas aparecem também ao longo desta entrevista de duas horas. A atriz, de 73 anos, iniciou a carreira como miss e foi estrela da pornochanchada e da era de ouro das novelas brasileiras. Alçada a símbolo sexual, não se dobrou às investidas masculinas e sofreu as consequências. Ainda assim, fala sobre as dores e as glórias do passado com a segurança de quem tem poucos arrependimentos. Reconhece que poderia ter sido mais disciplinada financeiramente e, mesmo ao relembrar a exploração midiática de sua intimidade quanto ao uso de drogas e ao relacionamento turbulento com o ator Felipe Camargo, nos anos 1990, não se culpa. “Fiz o que tinha que fazer”, afirma.
Vera também sabe que, por trás do tal nevoeiro, novas memórias estão por vir a reboque de um universo de possibilidades. Recentemente, gravou participação no filme “Coisa de novela”, com lançamento previsto para abril, na programação especial de 60 anos da TV Globo. Na produção protagonizada por Susana Vieira e Valentina Herszage, ela interpreta a si mesma em meio a outros astros que fizeram história na emissora, como Tony Ramos e Ary Fontoura. “Foi uma oportunidade de encontrar amigos queridos. Adorei e acho que todo mundo vai amar”, aposta. Na conversa a seguir, além de relembrar marcos da carreira, a atriz fala sobre sexo e vida afetiva.
Imagem: Jorge BispoVera veste camisa e calça Mixed e joias Vivara.
Novo espetáculo
“O casal mais sexy da América só estreou em Los Angeles. A minha personagem é uma grande estrela que abandonou um seriado de TV, e as pessoas começam a falar mal dela. Fala-se muito sobre etarismo, já que ela não consegue mais papéis. Há também assédio sexual. É aquela história dos homens sempre na supremacia.”
Filmografia diversa
“Fiz de filmes cabeça, tipo Walter Hugo Khouri, a pornochanchada. Atuei em longas de Sérgio Rezende, Cacá Diegues, Plínio Marcos... É uma filmografia muito diversa. Hoje, sinto falta de uma mulher da minha idade (como personagem) passando pelas coisas que passamos. Por que não podemos discutir isso no cinema, no streaming ou no teatro?”
Pornochanchada
“Era o trabalho que me ofereceram e, como sou despudorada e corajosa, aceitei. Precisava ganhar dinheiro e não me considerava atriz àquela altura. Passados os anos, comecei a enxergar como um movimento para driblar aquela censura horrorosa. Sinto muito orgulho.”
Nudez em revistas
“Quando era jovem, andávamos nus em casa. Era normal, só tinha um banheiro. O corpo não era uma vergonha nem sexualizado. É preciso entender a diferença entre corpo e sexo. Tinha essa confusão. Achavam que por eu aparecer pelada, era objeto de desejo. Já ofereceram dinheiro para sair comigo. Isso é humilhante para uma mulher.”
Aborto
“Passei por isso muito cedo e tive a sorte de encontrar uma ginecologista que me explicou que não era um bicho de sete cabeças. É um absurdo obrigar alguém a ter um filho. Vivemos num país onde as pessoas não têm o que comer. Tive os meus dois filhos exatamente quando quis.”
Assédio
“Sofri muito e, ao mesmo tempo, havia muita indiferença das colegas. Tive sempre que me virar sozinha. Precisei criar uma fórmula para me manter no trabalho. Inventava que tinha problemas ginecológicos, por exemplo. Mas tem que ter coragem para dizer isso para um produtor ou diretor. Já fui mandada embora da TV por não ceder. E não voltei atrás! Foi quando comecei a fazer teatro. Conheço pessoas da minha época que não aguentaram a pressão. Ficaram doentes, partiram para a bebida.”
Drogas
“Atores e atrizes envergonhados usam dentro de casa. Eles se drogam, se batem, traem uns aos outros, mas ninguém fica sabendo. Comigo, era na rua. Não porque eu queria, mas porque acontecia assim. A imprensa via muitas coisas, mas também aumentava um pouco. Então, ficou aquela coisa: Ela é a drogada, a maluca. E os outros eram os bonzinhos.”
Ponto final
“Parei sozinha, sem nenhuma internação ou terapia. A melhor coisa é não anunciar. Não falei nem para os meus filhos. Eles sabiam porque moravam comigo e viam. Não sei dizer exatamente quando foi, porque não sou de datas. Durante um tempo, parava e voltava. Como sou teimosa, às vezes, voltava só porque queriam que eu parasse. Hoje, tomo um vinho com um bom prato.”
Boates
“Dancei muito, até uns 60 anos. O problema é que, às vezes, ficava até as 5h e tinha que gravar novela às 11h (ri). Não bebia nem me drogava. Gostava mesmo era de dançar.”
Do Leblon para o Jardim Botânico
“Morei no Leblon desde os anos 1980. Estava num apartamento muito grande, cheio de lembranças, coisas que trouxe de vários países. Botei peças num leilão, passei algumas para outras pessoas e doei roupas. Guardei o estritamente necessário. Não tenho mais aquela parede me lembrando das coisas que aconteceram ali (no apartamento antigo). E isso é muito positivo.”
Finanças
“Gastei muito dinheiro dando festa e oferecendo viagens internacionais para as pessoas. Sou muito generosa e não me arrependo de nada. Se tivesse uma cabeça mais matemática, teria guardado mais dinheiro. Mas não sou empresária, né?”
Depois dos 70
“Aos 50 anos, estava no auge. Depois dos 70, as coisas mudam. Estou achando meio complicado, não estou gostando. Mas vou dar uma chance para que algo bom aconteça até os 78. Sou uma pessoa muito apaixonada. Então, gosto de me jogar e até de me machucar. Gosto de sentir grandes sensações. Às vezes, bate vontade de mudar tudo. Já escrevi livro, pintei... No quesito arte, posso surpreender a cada minuto. Agora, tenho pensado em criar uma marca de beleza para mulheres com mais de 50 anos. Sempre me cuidei e, a partir dos 70, é preciso se cuidar ainda mais.”
Além das redes
“Sinto que as pessoas estão muito fakes, mentem que estão felizes. Vejo cada coisa nas redes que quero me jogar no fundo do mar. Prefiro ver meus filmes, minhas séries, ler meus livros e ficar com os meus gatos. Tenho menos amigos hoje em dia porque os amigos, talvez, não fossem amigos. Eram pessoas que gostavam de aproveitar. Então, isso você vai eliminando também.”
Vida afetiva
“Namorado? Nem pensar! Eu me habituei a viver sozinha. É engraçado flertar, jogar um charme... Mas não tem condição de alguém conviver comigo, sou muito intratável. Quanto ao sexo, é uma coisa que você faz sozinha. Se tem imaginação, não precisa de mais nada.”
Amores livres
“Nunca tive relação com mulher, mas faltou pouco. Queria ser amiga, ficar junto, mas a pessoa queria um caso. Não tive vontade. Também tive um amigo gay, mais jovem, por quem me apaixonei. Queria um caso, mas ele não quis. Depois, ele me disse que nunca transou comigo porque tinha HIV. Isso foi uma facada! Ele morreu e, às vezes, fico pensando que um dia vou reencontrar todas essas pessoas que amo e foram embora muito cedo, assim como os meus pais. Vejo isso com muita beleza.”