Zélia Duncan: "Não tenho filho, tenho violão"

25/10/2024 14h20


Fonte O Globo

Um pensamento tem invadido a cachola de Zélia Duncan: “Com quem vão ficar meus violões?”. Prestes a completar 60 anos na próxima segunda-feira (28), ela deseja viver muito, mas diz que já caminhou o suficiente para saber que coisas acontecem de repente. Toc, toc, toc.

Por via das dúvidas, tratou de deixar anotadinhas todas as coordenadas sobre o destino de cada um de seus instrumentos. Um dos mais queridos já tem dono: o violonista Webster Santos, companheiro de banda há 20 anos.

— Outro dia, perguntaram como quero ser lembrada. Não consigo pensar desta maneira. O que quero que tenha continuidade são as coisas que usei e que outra pessoa pode usar. O mundo está acabando, vou pensar se daqui 40 anos vão cantar “Catedral”? (risos). Não tenho filho, tenho violão — brinca.

É assim desde que a cantora e compositora surgiu na cena artística há 43 anos: o amor pela música move tudo. E é ele novamente que vai reger as celebrações pela nova idade. Zélia sobe ao palco do Circo Voador, nesse sábado (26), em show dirigido por Marcio Debellian, que passa a carreira da artista a limpo.

— A ideia foi pescar coisas de todas as fases sem preocupação cronológica. O roteiro é de festa. Vai ser histórico estar cercada por tantos afetos. Quando alguém canta sua música, é como ser apresentada a ela de novo — conta ela.
Imagem: Divulgação / Alê CatanZélia Duncan(Imagem:Divulgação / Alê Catan)Zélia Duncan

Simone, “crush” adolescente

Zélia convidou parceiros como Moska, Isabella Taviani e Simone para canjas. A participação dessa última, aliás, traz componentes especiais para além da estreia no histórico palco da Lapa:

— Simone era o meu crush absoluto na adolescência. Quando fizemos o DVD e turnê juntas, nos ligávamos dos quartos de hotel: “Vamos ver um filme juntas?”. A gente deitava, eu olhava pra ela e dizia: “O tempo é sensacional”. Porque quando tinha 17 anos, juntava as amigas para tentar ligar na casa dela.

E Simone atendeu?

— Nunca, imagina. Era uma mensagem eletrônica. Se atendesse, o que íamos dizer? Até hoje me pergunto (risos). Quando ela apareceu na cena, foi um choque, abalou estruturas com sua voz e beleza. Eu começando a cantar, a namorar... foi doideira. Cheguei a ter aquele cabelo. E Simone está numa fase ótima, acelerando, cantando à beça, continua a coisa mais linda do mundo — lembra Zélia, que planeja disco e tem marcada temporada de shows batizada de “Lado Z”, no Blue Note de Rio e São Paulo.

Tornar-se oficialmente idosa tem lá suas vantagens. Zélia fez a constatação após teste drive em filas de aeroportos. Ela diz que vai tirar correndo o “cartão com idoso escrito em letras garrafais” para ocupar o lugar de prioridade. Mas faz uma reivindicação:

— O fim da bengalinha na placa! — afirma para, em seguida, refletir sobre sobre etarismo. — É louco... Nesse tempos horríveis, a primeira coisa que haters fazem é te chamar de velha.

Mulher, então...

— É um prato perfeito. A mulher pode ter 40 anos que já fazem isso. Mas fui me treinando. Como dizia meu avô, precisamos ter costas de couro de anta. Artista, então, apanha em qualquer momento da vida. Vejo pessoas com tantos serviços prestados levando porrada — analisa. — Temos direito de crescer, errar. Uma música minha diz: “Errar é útil”. O problema é errar em disco, porque está gravado (risos). Antes, te julgavam sem poder trocar a faixa com o botão, tinha que levantar para mudar a agulha. Hoje, se a música não agradou na introdução, nem te dão a chance de chegar ao refrão. Se faz música de três minutos, é completamente doida.

Os erros Zélia mata no peito e assume. Diz que teria feito algumas coisas diferentes e que carrega lá seus arrependimentos. Mas segue reiterando os riscos que bancou:

— Para um artista, não arriscar é muito arriscado. É ficar na mesmice. Nunca fiz um disco que não quisesse, e meus “não” tiveram preços. Mas não caio na esparrela de ficar me lamentando. Não devemos ter inveja da gente mesmo. Há certa tendência a dizer, “pô, naquela hora, eu estava na crista da onda”. Não tenho inveja de juventude. Não porque sou incrível, me trabalhei. Vivemos num mundo onde a juventude te é cobrada todo dia, mas não caio nessa.

Ligar o "dane-se" é ganho da maturidade.

— Estou nessa com força. Não sou infalível. Mas não quero mais saber de tudo que acontece, ser o arauto da novidade. Sei como é estar em evidência, quererem saber até o papel higiênico que usa. Saquei isso quando estourei com “Catedral”. É divertido, gostoso, mas tudo bem estar em outro lugar — afirma. — Tenho minhas melancolias, nostalgias. Como ter pena de não saberem mais a ficha técnica de um disco. Mas com 14 anos, queria que cantar fosse a minha vida, e foi. Quando a tristeza chega, negocio comigo. Quero olhar as cadeiras cheias. Envelhecer em público não é fácil, mas acho que sou muito mais legal hoje.

Tema de pesquisa

Para Zélia, “a vida da gente é o rastro que a gente deixa” . E seu rastro vai de gravar jingles a cantar com os Mutantes. De fazer backing vocal para ídolos populares como os cantores Bebeto e José Augusto a emplacar hits autorais. Ela define essa mistura como "um delicioso siri com Toddy".

É uma trajetória e tanto, que agora inspira a pesquisa alunos de uma escola pública de Bangu, Zona Norte do Rio.

- A professora Veronica Marcilo, mulher incansável, me chamou. Estão há seis meses ouvindo meus discos. É das coisas que mais me dão alegria. Essas crianças não me ouviriam, meu trabalho está distante delas. Se a gente puder abrir uma portinha, vai que tem um cantor, uma escritora, uma pessoa gay precisando ser ouvida... - analisa ela, madrinha de uma biblioteca em Costa Barros dentro do projeto Favelivros.

Pois as letras também são sua praia. Autora de "Benditas coisas que eu não sei", indicado ao Jabuti de 2023, Zélia prepara para a coleção Brasileiras, da Record, um livro sobre Cassadra Rios (pseudônimo de Odette Pérez Ríos), considerada a primeira autora brasileira a escrever sobre homossexualidade feminina, quebrando um tabu gigantesco.

- Também foi a mais censurada da ditadura. De 50, 36 livros dela foram censurados. Vendia muito. Falava de coisas proibidas e de um jeito cru, usava palavras populares. O primeiro livro dela, aos 16 anos, chamava "A volúpia do desejo". Essa leitura e o filme "Uma paciência selvagem me trouxe até aqui", quando convivi com jovens lésbicas, meu deu outro entendimento das coisas. Vejo Cassandra convivendo com preconceitos, lesbofobia, transfobia, coisas que existem dentro da nossa comunidade.

Se debruçar sobre a existência da escritora tem tido um efeito analítico sob Zélia Duncan. Ou, como diz, provocado ela a "se colocar a fogueira", olhar para os próprios preconceitos. Com ela mesma, aliás:

- Fui uma adolescente envergonhada do meu desejo. Sou uma das meninas tímidas que entravam no meu camarim. Com uma pessoa masculinizada, estranha, reprimida, aprendi que sou a pessoa com a qual ela se identificou. Não sou nenhuma fadinha. Tenho meu peso, masculino e feminino sempre estiveram dentro de mim. O palco e o camarim me autorizaram a ser quem eu sou, e a corresponder ao que escrevia e cantava. Me emociono quando duas mulheres ou dois homens dizem: "Botamos sua música no nosso casamento".

Falando em casamento, o de Zélia com a designer Flavia Pedras vai muito bem, obrigada. As duas assinaram união estável em 2021 e, desde então, a pele da cantora anda ótima...

- Tem a ver com estar em paz, né? (risos).

O que inclui a consciência tranquila por não ter se rendido à pressão sobre as mulheres de terem filhos.

- Eu e Flavia conversamos sobre isso em casa. Tenho mania de apontar dedo para mim. Pensei em ser mãe numa época rápida. Queria mesmo ser avó, ter casado com alguém que tivesse um neto. Acho delícia. Tenho o nome da minha avó, adoraria ser chamada de vovó Zélia, como a chamava. Tido a casquinha nos filhos dos amigos. Acho bonitinho um colega com o filho no palco. Mas não tenho inveja. Nem desse amor incondicional, como falam. Tem uma coisa arrogante aí, como se quem não tivesse filho jamais soubesse. Confundem instinto com amor incondicional.

A cobrança pela maternidade, segundo Zélia, foi menor pelo fato de ser gay, o que não a livrou de neuras.

- Me descobri gay em 1981. Achava que era uma sentença de "não vai ter filho". Botei isso na minha cabeça. Tanto que a primeira vez que vi uma mulher gay grávida, fiquei impressionada. Deu um nó na minha cabeça. Isso aí é repressão. É aceitar a prateleira em que te colocam - acredita. - Passei anos achando que não era possível. Quando vi que era, não tive vontade. Amo criança. Mas não acho que, para ser mulher, precise passar por esse amor de maneira tão literal. Não me faz falta essa experiência. Tenho muito amor e exercito pra caramba. Sou uma pessoa muito maternal.

"Eles que lutem"

Diante de tantos casos de todo tipo de abuso masculino dá alívio ser sapatão ou é péssimo colocar as coisas nesses termos?, pergunto a Zélia.

- É triste ver a decadência masculina. Mas ela tem tem que acontecer para que eles se reconstruam. Como vão fazer isso não é problema meu. Eles que lutem! Mas é claro esse tombo da masculinidade. Tem a ver com o que falei antes: é proporcional à nossa consciência.

Ela conta que as amigas heterossexuais relatam ouvir de seus maridos: "Ó, tá cheio de mulher sozinha aí, fica com esse negócio de ser feminista...".

- Meu pai foi muito ausente como pai, péssimo marido para as quatro mulheres oficiais que teve. Quando me vi gay, sofri pra caramba. Fui crescendo e foi me dando uma alegria. Porque via o esquema, meus amigos... Convivi com músicos de outra geração, viajando. O jeito que eles faziam em cada cidade, as coisas que eu via... Eu pensava: "Não preciso passar por isso. Vou passar outros perrengues, esses não". Vejo o que passaram irmãs, parentes, amigas... Amo os homens da minha vida, tenho compaixão, palavra que vão odiar (risos). Mas acho que estão perdidos. Os mais perdidos são os que se acham achados.

A cantora tem uma teoria sobre a eterna desconstrução masculina, que parece não construir nada:

- Não constrói porque não desconstruiu direito. Vai construir em cima de ruína? Me coloco na luta antirracista e estou nessa construção para ser realmente essa pessoa. E é igual a esse patriarcado aí: tem que abrir mão de privilégios. Nós todas temos um caso de abuso. Mas os homens que conheço nunca contam nenhum abuso deles. Nunca ouvi um "pô, aquilo que fiz não foi legal". Nem dos mais bacanas.

Para ela, gostar "de mulher" não significa gostar "da mulher".

- Gostar da mulher é gostar da companhia dela, da cabeça, do jeito, da natureza dela. Gostar de mulher não é ir ali transar... Por que existe estupro coletivo? Porque é um mostrando para o outro. A hora que o homem deixar de considerar outro homem mais importante que a mulher, talvez melhore. Ainda é mais importante mostrar paro outro do que ser um companheiro bacana. Se me perguntar qual é a primeira coisa que olho numa mulher: os olhos e as mãos. Principalmente, o que aquela boca tá dizendo.

O mundo dos homens não deu certo, sentencia Zélia:

- É guerra, ganância. E como é bonito o lance feminino do cuidar. Já faz a gente diferente. Somos regidas pelo patriarcado, que não deu certo e estamos dando o nosso jeito. Tudo que a gente andou, devemos à consciência do feminismo negro. Minha vida mudou com bell hooks, Grada Kilomba, Angela Davis, Cidinha Silva, Joyce Berth. Não sei o mundo, mas as mulheres estão melhorando.

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Tópicos: mulher, amor, artista