Ardência do canto da sereia Filipe Catto emerge com potência na cena que gera o álbum O nascimento
17/12/2021 11h53Fonte G1
Imagem: Reprodução
A laminada voz de contratenor, de timbragem andrógina, talvez seja o único elo indestrutível entre o Filipe Catto que chega ao mundo como artista trans não-binária no álbum O nascimento de vênus tour – disco ao vivo lançado hoje, 17 de dezembro de 2021, com 15 números de show captado em 2020 – e o Filipe Catto que, há dez anos, emergia no universo pop com Fôlego (2011), álbum impulsionado tanto pelo canto ardente quanto pela imagem de galã forjada pela gravadora Universal Music.Ao longo dessa década, Catto se reinventou como artista – em movimento salutar que o libertou da aura kitsch imposta pela indústria da música e o trouxe de volta para a cena indie – e como ser humano, passando por mudança de gênero.
O renascimento artístico foi iniciado com o segundo álbum de estúdio – Tomada (2015), álbum de menor voltagem formatado com produção musical de Kassin – e concluído com o estupendo álbum posterior, CATTO (2017), base do show que rendeu turnê pelo Brasil, encerrada precocemente em virtude da pandemia.
A turnê dá à luz hoje o segundo disco ao vivo dessa cantora e compositora de origem gaúcha, há anos residente na cidade de São Paulo (SP). Foi em Sampa que, em 13 de março de 2020, sob a direção musical de Felipe Puperi, Catto fez sem saber a última apresentação do show O nascimento de vênus, já que, no dia seguinte, todos os palcos foram fechados para conter o avanço da covid-19.
Foi a partir da captação do áudio dessa apresentação que Filipe Catto deu forma ao álbum O nascimento de vênus tour.
Com o toque da banda formada por Fábio Pinczowski (guitarra), Jojo Lonestar (guitarra, programações e synths), Magno Vito (baixo e synth bass) e Michelle Abu (bateria e percussão), Catto rebobina a luminosidade de composições como É sempre o mesmo lugar (Romulo Fróes e César Lacerda) – raio x dos anseios do povo de um país que parece sempre viver por um triz – e Saga (Filipe Catto, 2009), ponto de partida da trajetória da artista, repisado no show entre ruídos e beats eletrônicos.
O álbum O nascimento de vênus tour chega ao mundo simultaneamente com filme criado por Catto com Daguito Rodrigues e Juliana Robin. A narrativa visual do filme expande o áudio do derradeiro show em espetáculo de linguagem híbrida que entrelaça estéticas de clipe, documentário, moda e vídeo-arte, costurando imagens de arquivo com takes da performance gravada por Catto no estúdio Imaginar (SP) em 31 de julho deste ano de 2021.
No estúdio, Catto assumiu a pose e o figurino de sereia, seguindo o roteiro do show captado somente em áudio em março de 2020. A exibição de imagens de arquivo – como o da audição do álbum CATTO para amigos – por vezes interrompe o fluxo da narrativa para quem se interessa somente pelo som potente formatado pela produção musical orquestrada pela artista com DJ Jojo Lonestar.
O show tem atmosfera eletrônica e por vezes futurista, como evidenciado nas abordagens do hit Eva (Umberto Tozzi e Giancarlo Bigazzi, 1982, em versão em português de Marcos Ficarelli) – previamente apresentada em single em 3 de dezembro – e da febril Torrente (Filipe Catto e Fábio Pinczowski, 2017). Os trinados agudos ao fim de Adoração (Filipe Catto, 2011) expõem a eletricidade do canto límpido da sereia.
No entanto, tudo parece estar no lugar e fazer sentido no império sensorial de Filipe Catto – inclusive composições autorais que resultam sem o poder magnético da voz que cai a capella no samba Roupa no corpo (Filipe Catto, 2009). É o caso de Lua deserta (Filipe Catto), de cuja letra foi extraído o título do show O nascimento de vênus.
“Não sei quanto tempo passei submersa. Estou viva, entregue ao mistério”, recita Fillpe Catto, emergindo em cena com a ardência que caracteriza o canto da sereia no show que gerou o álbum O nascimento de vênus tour.