Assucena é amor da cabeça aos pés ao celebrar Gal Costa em show que recria marcante álbum da cantora
13/02/2023 15h30
Imagem: Mauro FerreiraClique para ampliarAssucena é amor da cabeça aos pés ao celebrar Gal Costa em show que recria marcante álbum da cantora
"Vou fazer a Bethânia para homenagear Gal”, gracejou Assucena no palco do clube carioca Manouche na noite de sábado, 11 de fevereiro, antes de declamar a letra de Minha voz, minha vida (1982), música em que Caetano Veloso traduziu em versos a imensidão do canto de Gal Costa (26 de setembro de 1945 – 9 de novembro de 2022).
Sim, pela voz grave e pela natural teatralidade com que interpreta repertório próprio e alheio, Assucena muitas vezes evocou a intensidade de Maria Bethânia na primeira apresentação do show Rio e também posso chorar – Um tributo a Gal Costa (2021) na cidade do Rio de Janeiro (RJ). A evocação somente engrandeceu o espetáculo idealizado pela artista baiana com o DJ Zé Pedro em 2021 para celebrar os 50 anos do álbum ao vivo Fa-Tal – Gal a todo vapor (1971).
Quando estreou na cidade de São Paulo (SP), em 10 de dezembro de 2021, o show era tributo a álbum emblemático na discografia brasileira e na obra de Gal por ter eternizado momento de resistência e de contracultura no Brasil repressor de 1971. Com a partida da cantora baiana para outra dimensão, em novembro do ano passado, o show se tornou naturalmente um tributo ao legado imortal de Gal, ainda que continue centrado no repertório do disco originado de show concebido pelo poeta Waly Salomão (1943 – 2003).
Assucena acertou ao evitar a tentativa vã de emular os registros vocais de Gal e de tentar simular a atmosfera claustrofóbica do Brasil de 1971, ainda que a resistente polarização política do Brasil de 2023 faça do show, também, um manifesto de liberdade – até porque feito por cantora trans, o que dá sentido próprio à interpretação da balada bluesy Pérola negra (Luiz Melodia, 1971), por exemplo.
Atração do projeto Toda maneira de amor valerá, idealizado pelo Manouche em parceria com a série Trans musical (produção ainda inédita do Canal Bis para a qual o show foi gravado na apresentação carioca) com a intenção de dar voz e palco a artistas associados ao movimento LBGTQIAP+, a estreia do show de Assucena no Rio de Janeiro (RJ) reiterou a expressividade da intérprete, já evidenciada no show Minha voz e eu (2022), apresentado no mesmo Manouche em abril do ano passado.
Escorada no power trio formado pelo guitarrista Rafael Acerbi (também no violão e na certeira direção musical) com Beatriz Lima (baixo) e Bianca Predieri (bateria e programações), Assucena foi amor da cabeça aos pés ao reverenciar Gal em roteiro aberto de forma inebriante, com a voz cristalina de Gal encorpada no coro de Fruta gogóia (tema do folclore baiano) antes de Assucena recitar o elétrico poema Olho de lince (Waly Salomão, 2005).
Na sequência do show, Assucena virou e revirou passado e presente em roteiro que abriu espaços para temas autorais da artista, uma “profanação”, como a cantora caracterizou para o público, quase se desculpando por desviar do trilho seguro do disco. Dentre os temas da artista, o samba Pica-pau (Assucena, 2017) se afinou com o show por dialogar com a brejeirice do canto de Gal nos anos 1970.
Já Uma canção pra você (Jaqueta amarela) (Assucena, 2015), embora remetesse ao angustiado universo poético do álbum de 1971, soou como anticlímax no fecho do bis iniciado com abordagem de Baby (Caetano Veloso, 1968) em voz e violão, feita antes do rock Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), momento catártico do show.
Entre a abertura e o bis, Assucena deu o devido tom melancólico ao samba-canção Antonico (Ismael Silva, 1950), reviveu o refrão de Charles Anjo 45 (Jorge Ben Jor, 1969) antes de Como 2 e 2 (Caetano Veloso, 1971) – tal como Gal fazia no show – e fez Coração vagabundo (Caetano Veloso, 1967) bater com a intensidade amorosa recorrente na apresentação.
Se a cantora excluiu Falsa baiana (Geraldo Pereira, 1944) do roteiro, por ainda estar insegura com o canto do samba (“Mas já estou ensaiando”, avisou), Assucena incluiu outro samba cantado por Gal no show, Para um amor no Recife (Paulinho da Viola, 1971), mas excluído do disco lançado em dezembro de 1971. Nesse número, a cantora simulou batucar o violão cenográfico portado em cena com charme.
Após se distanciar do trio elétrico, ralentando a marcha-frevo Chuva, suor e cerveja (Caetano Veloso, 1971), Assucena recitou o poema Clandestino (Waly Salomão, 1998) e alçou o voo mais alto do show ao cantar Mal secreto (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) de forma exuberante, inicialmente a capella e depois com a banda em pegada de blues.
O trio, aliás, contribuiu para ambientar o repertório do álbum de 1971 em atmosfera moderna que, sem procurar reproduzir os arranjos do show original, conseguiu se conectar com a contemporaneidade atemporal de Fa-Tal sem jamais cair na imitação ou na caricatura.
O voo de Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1950) foi feito na mesma altitude de Mal secreto, com Assucena expondo a dor e emulando o canto dilacerado do pássaro cego que anseia por liberdade.
Facho de luz na escuridão do Brasil de 1971, o show Fa-Tal – Gal a todo vapor reluz sob outro prisma na visão de Assucena. Ao pegar aquele velho navio, por vezes fazendo a Bethânia para celebrar Gal Costa, a cantora baiana soube se desviar das águas de um passado que não volta mais, mas que permanece vivo no canto matricial e inigualável de Maria da Graça Costa Penna Burgos.