Áurea Martins atinge o céu com Senhora das folhas, álbum em que professa as crenças e fés
31/03/2022 11h25Fonte G1
Imagem: Reprodução Emocionante álbum em que Áurea Martins celebra o canto e o poder curador das rezadeiras, benzedeiras e curandeiras do Brasil, Senhora das folhas amplia o alcance e o sentido do território afro-indígena nacional, indo além das demarcações folclóricas desse gênero musical ao abraçar o ecumenismo da fé do povo brasileiro.Idealizado por Renata Grecco, também creditada como diretora artística do disco lançado em 8 de março em edição digital e disponibilizado em CD nesta última semana do mês pela gravadora Biscoito Fino, o álbum Senhora das folhas desvia a cantora carioca – a caminho dos 82 anos, a serem festejados em junho – do habitual universo do samba-canção.
A sacralidade do canto de Áurea Martins a redime da natural falta de viço da voz já octogenária e legitima o álbum. A intérprete soa em estado de graça.
Sob a direção musical do violoncelista Lui Coimbra, a dama da canção cai com graciosidade no samba praieiro de sotaque rural Folha miúda, fornecido pelo compositor baiano Roque Ferreira e unido por Áurea no disco com Menino do Samburá.
Da Bahia também vem Salve as folhas (Gerônimo e Ildásio Tavares, 1988), tema arranjado com mix de tambores e guitarras, indo além dos códigos musicais do universo musical afro-brasileiro.
Senhora das folhas mostra que a fé está em todo o canto. Tanto que um dos momentos mais fortes do disco vem da abordagem de A rezadeira (2014), rap de Projota que segue curso mais melódico no canto fluente de Moyseis Marques – quase o intérprete solista da faixa, pontuada por intervenções da voz de Áurea – e que expõe a fé na prece de senhora evangélica, em oração pelo filho no corre diário da vida, em gravação que abre com citação sagaz de Relampiano (Lenine e Paulinho Moska, 1997), flash do abandono infantil na selva das cidades.
“O dinheiro é o veneno da alma”, sentencia Áurea na prece feita com a récita do poema Vô madeira. Os versos da poeta Julie Dorrico, da etnia Macuxi, preparam o clima para a interpretação de Araruna (Nahiri Asurini e Marlui Miranda), canto da etnia Parakanã do Pará, na voz do cantor André Gabeh.
Na saudação ecumênica feita por Áurea ao longo das 11 faixas do álbum Senhora das folhas, há espaço para a crença na força maior que rege o samba Na paz de Deus (Arlindo Cruz, Sombrinha e Beto Sem Braço, 1986) – apresentado ao Brasil há 36 anos na voz de Alcione – e para a fé nas ervas, águas e santos que receitam Banho de manjericão (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, 1979).
Banho de manjericão é samba lançado na voz de Clara Nunes (1942 – 1983) – cantora que louvou a religião afro-brasileira e os orixás em discos dos anos 1970 – e revivido por Rita Benneditto em Encanto (2014), álbum em que a cantora maranhense expandiu o universo do repertório do show Tecnomacumba (2003).
Neta de Dona Francelina, senhora rezadeira que habitava Campo Grande, bairro da zona oeste carioca onde Áurea foi criada, a cantora acentua a carga de ancestralidade quando se embrenha pelas matas brasileiras para reverberar Ponto das caboclas (Camila Costa) como se fizesse a própria tecnomacumba na faixa de ambiência eletrônica, e quando louva Senhora Santana, tema de origem medieval que saúda Santa Ana, a avó de Jesus, em gravação que embute citação da Incelença de Nossa Senhora, tema de domínio público.
Nesse mesmo terreno sagrado, o álbum Senhora das folhas abre com Incelença da chuva nas vozes das Cantadeiras do Souza, ecoando tradições orais do Povoado do Souza, encrustado em território mineiro, precisamente em Jequitibá (MG).
Incelença da chuva abre o caminho para a saudação das folhas em O ramo (Socorro Lira, 2018). “Salve, salve a fé no amor / Que cura tudo, o mal, a dor” professa Áurea nessa canção que sintetiza os caminhos percorridos pela senhora cantora em trilho de fé que alcança pico de beleza na trama de violões e violinos criadas por Lui Coimbra, com sotaque ibérico-hindu, para o canto de Áurea atingir a alma do ouvinte em Prece do ó, louvação de Santo Antônio do Categeró, santo negro, africano e escravizado que, levado como mercadoria para a Itália, tornou-se monge e fez milagres e fama que chegou ao Brasil, sendo cultuado na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Bahia, estado mais negro do país.
Curiosidade: a letra é prece tradicional recolhida por Cassiano Ricardo. Já a melodia é dos compositores galegos do grupo Berroguetto, mas não foi criada para a prece. Letra e música se juntaram quando o pesquisador, violeiro e cantador mineiro Dércio Marques descobriu a perfeita sincronicidade entre versos e melodia.
Fora do território sagrado, Áurea Martins se ergue ao reconhecer as próprias pequenezas humanas ao dar voz aos versos da canção Me curar de mim (Flaira Ferro, 2015) como se estivesse no confessionário ou diante do espelho, inventariando as fraquezas. É o canto em feitio de oração.
Juntamente com a abordagem do rap de Projota, a interpretação da canção Me curar de mim emociona e dá grandeza a Senhora das folhas, álbum em que Áurea Martins atinge o céu ao irmanar várias crenças e fés no tom ecumênico do Brasil.
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