Carnaval sem gordofobia: ativistas lutam pela valorização de todos os corpos
21/02/2020 22h52Fonte Revista Marie Claire
Imagem: Arquivo pessoalNilma Duarte (a segunda da esquerda para direita) e suas grandonas, como chama as amigas, ainda no início de seu projeto de inclusão.
“Em 2018, durante o Carnaval, eu estava em um bloco com uns amigos e um deles me disse olha, se você desmaiar ou passar mal aqui, ninguém vai conseguir te carregar. Você vai ficar por aqui mesmo. Fiquei extremamente constrangida e preocupada o resto do tempo pensando que eu seria um peso para eles e que, se algo acontecesse, ninguém iria me ajudar.”
Esta não foi a primeira ou a última vez que Gabriella Morais foi vítima de gordofobia explícita ou disfarçada de piada ou brincadeira. Este tipo comentário pode vir tanto de amigos como de pessoas desconhecidas nas ruas durante o Carnaval, época em que todo mundo quer se divertir e se sentir livre - mas não só. Desde pequena, a atriz sempre foi gorda e entende como ninguém a sensação de ser vítima de insultos.
Por este motivo, ela se juntou à amiga Luana Carvalho para criar uma campanha de combate à gordofobia não só no período mais festivo, como também durante todos os dias do ano. As duas idealizaram o Carnaval Sem Gordofobia que, por meio de hashtag e uma página nas redes sociais, pretende viralizar um projeto de conscientização contra o preconceito.
“Fui a um bloco na minha cidade, Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, acompanhada de uma amiga magra. Desde o início, ouvi todo tipo de comentário das pessoas em relação ao meu jeito de dançar. As pessoas apontavam, davam risada e se questionavam em voz alta como ela não tem vergonha?. Depois fui a um pagode e o mesmo se repetiu: pessoas riam, apontavam para mim e falavam da forma como eu sambava. Lá, me chamaram de almôndega’ e coisas parecidas”, lembra Luana.
Ela explica que a ideia para a campanha surgiu de uma conversa que teve com Gabriella sobre como as duas aproveitariam o Carnaval no Rio de Janeiro e ambas desabafaram sobre a gordofobia que já sofreram nos blocos de rua.
“Percebemos que tínhamos uma demanda com o Carnaval, que é um ambiente extremamente gordofóbico apesar de ter essa prerrogativa de festa e liberdade. A partir disso pensamos que poderíamos fazer algo maior que criar nossa hashtag, então decidimos juntar uma galera gorda para curtir um bloco de rua todos juntos”, afirma.
A atriz completa que a dupla entendeu que era imprescindível trabalhar a gordofobia como algo que está muito além de amor próprio e aceitação, então elas queriam falar também sobre acesso.
“Estamos nos referindo a diversas áreas de nossas vidas para além de uma conscientização sobre o que é gordofobia e como ela se desenvolve nos espaços. A campanha também tem o objetivo de reunir pessoas gordas para ocupar blocos no Rio de Janeiro. Para que possamos trocar afetos e mostrar que nosso corpo também é livre e político.”
ENCORAJAMENTO
Não demorou muito para que as meninas reunissem um grande número de relatos de humilhação no metrô, no trem e na rua. pessoas gordas sendo fotografadas sem autorização e gordas humilhadas. Foi neste mesmo estado de cansaço psicológico que a passista Nilma Duarte, 47, encontrou suas “grandonas”, como as chama. Ela lidera um projeto que inclui mulheres gordas nos desfiles de Carnaval e que valoriza seus corpos como são.
O movimento Plus no Samba nasceu em 2017 com objetivo de apresentar às escolas de samba estas mulheres cheias de gingado, mas marginalizadas por conta de um padrão de corpo imposto pela sociedade. A passista conta que seu projeto surgiu quando muitas mulheres a elogiavam por não ter vergonha de dançar e diziam sonhar fazer o mesmo.
“Elas me diziam que queriam ter a coragem que eu tinha de simplesmente estar no local e deixar o samba fluir. Isso começou a acontecer", conta.
Nilma alerta que uma pessoa pode se tornar depressiva quando ouve ataques preconceituosos que a desmerecem. Ela relata que algumas meninas que sofreram com isso e que, por meio do movimento Plus no Samba, conseguiram dominar esta questão.
“Quando comecei, achava que o projeto era somente colocar mulheres para sambar, mas fui aprendendo com cada uma delas que o trabalho vai muito além disso. É um trabalho de cuidado, de pegar um diamante bruto, lapidar até se tornar uma joia de verdade. Elas continuam lá dentro e o que faço é mostrar para elas o mulherão que existe dentro delas. Esse ensinamento que tive como modelo, aulas de etiqueta, saber me portar, dar oportunidade de conhecer pessoas bonitas, serem vistas e respeitadas faz um diferencial. Isso fortalece”, comenta.
Ela salienta que já se apresentou em casamentos, eventos e até aniversários de 15 anos em que a jovem debutante esteva acima do peso, com muitas frustrações e pôde se sentir representada por um grupo formado de mulheres gordas, com roupa de pinta [de brilho], sambando, sorrindo, se divertindo e, o mais importante, sendo felizes.
“É muito essa representatividade. Não tem preço isso para mim. O relato dessas meninas me deixa muito sensibilizada. Tudo o que está acontecendo, essa exposição, devo muito a cada uma delas. Eu amadureço a cada dia. As grandonas falam que a vida delas mudou muito a partir do momento que me conheceram. Muitas delas seguiram nas suas diretrizes, mas são outras mulheres que aprendem a se cuidar, maquiar, impor e até como se colocar nas redes sociais.”
“Não temos roupas nem representatividade”
Alexandra Gurgel, mais conhecida nas redes sociais como Alexandrismos e fundadora do Movimento Corpo Livre, acredita que nesta época do ano exista uma segregação mais intensa entre magros e gordos. Carioca da gema, ela discorre que o Carnaval é uma festa de corpos perfeitos e lembra que, na época que ainda não aceitava seu corpo gordo, mantinha um grupo no WhatsApp com suas amigas chamado Cansei de Ser Baleia, Quero Ser Sereia.
“Eu e minhas amigas queríamos sair vestidas de sereia no Carnaval e só nos achávamos neste direito se estivéssemos magras. O culto ao corpo neste período do ano marginaliza ainda mais a gente. Não temos roupas, nem representatividade, mas temos o culto ao peito de fora, bunda dura e as mulheres que têm de ser super-heroínas. As rainhas de Carnaval viraram o ícone de satisfação de um monte de gente. Todo mundo quer ter a virilha sarada da Sabrina Sato. Ela própria até pediu para que as pessoas parassem de falar dessa maneira sobre seu corpo porque ele sempre foi desse jeito e nem todo mundo tem um iguasl. É muito ruim! Somos sempre preteridos e há uma segregação”, esclarece.
A influencer acredita que o capitalismo e o machismo estão aliados e são a raiz de todo este problema. Ela explica que os dois estão de mãos dadas com a gordofobia porque a atual sociedade patriarcal e machista coloca a mulher em um lugar de objeto.
“Essa desigualdade no tratamento em todas as opções nos faz sofrer mais do que os homens com nossa aparência. Ela vale mais do que nosso currículo ou uma prova que mostre minhas capacidades. A gente sente que nossa vida só vai começar depois que emagrecermos. Tudo o que a gente vê de referência de sucesso é um mundo de pessoas magras e não daqueles que são fora do padrão. Curtir o Carnaval com seu short ou top já é um baita ato de resistência porque você vai na contramão de tudo o que impuseram para você. O que não esperam é ver uma pessoa gorda feliz. Estou há cinco anos neste trabalho e fico feliz por ser uma voz ativa nisso. Queremos normalizar todos os corpos porque eles merecem o mesmo acesso, direito e possibilidades."