Como o cinema transforma certos animais em heróis e outros em vilões

08/02/2020 11h29


Fonte Revista Galileu

Imagem: Ilustração: Gustavo DuarteClique para ampliarSessão animal(Imagem:Ilustração: Gustavo Duarte)Sessão animal
As hienas são vilãs; o lobo é mau; tubarões são assassinos; peixes-palhaço são fofos; orcas só querem matar. Não é de hoje que o cinema se apropria do mundo animal para criar personagens de entretenimento infantil — e, de quebra, pautar o imaginário popular com estereótipos e preconceitos relacionados aos bichos. Resultado: crianças crescem sabendo lhufas sobre a vida de certas espécies.

Atire o primeiro VHS quem não tem, desde a infância, a ideia de que hienas são seres burros, perigosos e com uma risada demoníaca. Culpa de O Rei Leão. Quando a primeira versão do filme foi lançada, em 1994, biólogos ligados a entidades de proteção ambiental protestaram contra a maneira como esses animais foram reproduzidos. O argumento era que, ao tratar de forma pejorativa uma espécie, crianças tendem a encará-la como negativa — e, provavelmente, vão crescer acreditando nisso. No remake deste ano, lançado em julho, permanece o caráter maligno desses mamíferos, que levam a má reputação pelo fato de que se alimentam principalmente de cadáveres de animais.

Só que, justamente por isso, eles são importantíssimos. “Esses carnívoros são responsáveis pela limpeza do ambiente ao consumirem carcaças deixadas para trás por grandes felinos”, explica a veterinária Gabriela Viana Moreira, gerente da World Wide Fund for Nature (WWF) no Brasil. As preferências alimentares das hienas contribuem para diminuir a quantidade de insetos, evitar a disseminação de doenças e impedir a contaminação de rios. Em diversas regiões da África, porém, a caça e a ocupação de habitats são responsáveis por esses animais estarem ameaçados de extinção. “Quando o público entende o papel que um animal desempenha no ecossistema, é mais provável que ele veja os benefícios dos projetos de conservação da vida selvagem”, analisa a ativista Lauren Thomasson, da organização People for the Ethical Treatment of Animals (Peta), responsável pelo setor da entidade que avalia como o cinema e a televisão abordam questões ligadas aos animais. “Esperamos que a maioria das crianças consiga distinguir fato de ficção. Mas apoiaríamos totalmente se a Disney fizesse um filme destacando as qualidades das hienas — usando apenas imagens geradas por computador, é claro”, observa.

Que nos desculpem os fãs da história de Simba, mas a animação também peca em outros pontos. A própria natureza prova: seria improvável que dois leões irmãos, como Mufasa e Scar, ascendessem dentro de um mesmo grupo até a idade adulta. Em geral, machos são únicos nos bandos e contam sempre com um harém. Quando há dois ou três membros do sexo masculino, eles nunca são consanguíneos.

Quer mais um erro? No filme, o jovem Simba cresce se alimentando apenas de insetos. Isso seria biologicamente inviável diante da fome leonina: considerando a necessidade calórica de um leão em fase de crescimento, ele precisaria comer insetos, sem parar, 24 horas por dia. Algo humanamente impossível — quer dizer, leoninamente impossível.

É só ficção?

Abordagens incorretas em filmes com animais não justificam acabar com esse gênero, claro. Não só porque são divertidos e agradam crianças e adultos, mas também porque há quem diga que essas produções, de um jeito ou outro, contribuem para a conscientização. É o que mostra um estudo da Universidade de Oxford publicado em agosto na revista científica Ambio.

Analisando os dados de padrões de pesquisa do Google, os estudiosos concluíram que sucessos cinematográficos geram maior interesse pelas espécies retratadas. E isso vale principalmente para as animações, que são vistas por pessoas de todas as idades — o que não é o caso dos documentários, por exemplo. Um dos autores do artigo, Diogo Veríssimo, ressalta ainda que os desenhos animados possibilitam mostrar um número maior de espécies e abordar mais temas. “Há potencial para uma parceria entre estúdios de cinema e pesquisadores trabalhando na conservação da biodiversidade”, sugere o especialista em comportamento.

Claro que não seria legal que os roteiros sofressem interferência constante motivada por causas, legítimas ou não. Isso cercearia a liberdade de expressão e o próprio senso de que a ficção existe para entreter, divertir, contar histórias. Afinal, não se espera de um filme infantil a mesma acuidade e precisão de um documentário. Mas há iniciativas positivas: o remake de Dumbo, lançado em março, foi visto como exemplar ao retratar o sofrimento da mãe elefante e de seus filhotes. “O filme transmite a humilhação e a dor que os animais experimentam quando são forçados a fazer truques”, afirma Thomasson. Ao mostrar essa realidade, o longa funcionou como uma forte mensagem contrária à presença de animais em circos.

Há outras soluções possíveis, como fazer da história um gatilho para instigar a natural curiosidade infantil (desde que não haja conceitos equivocados, claro). “A ficção nem sempre tem o dever de instruir, mas os adultos que acompanham as crianças devem tentar corrigir as informações que são alteradas nessas obras”, propõe a veterinária Gabriela Moreira.

Quanto às pessoas que escrevem os roteiros, também há outros caminhos além daqueles que acabam estigmatizando certos animais. Ativistas sugerem que a personificação do mal, quando necessária para a história, fique restrita a alguns indivíduos da espécie, e não a todos. Dá para ilustrar essa ideia com O Rei Leão mesmo: é legítimo que haja o leão bom e o leão mau (Mufasa e Scar), isso não necessariamente cria preconceitos sobre os felinos como um todo — a exemplo do que acontece com as hienas, coitadas.

A vida secreta dos pets

Se alguns animais selvagens queremos ver apenas na tela do cinema, outros desejamos ver (e ter) bem pertinho. Fala sério: quem nunca quis ao menos um filhote de dálmata? Muita gente não só teve essa vontade como acabou comprando um, de fato, quando 101 Dálmatas foi lançado, em 1996. “Os melhores dados que existem ligando filmes a compra de animais são exatamente com cães domésticos”, destaca Diogo Veríssimo.

Um trabalho publicado em 2014 no periódico científico Plos One selecionou 29 produções lançadas entre 1927 e 2004 nos Estados Unidos e que têm cães como personagens principais. Cruzando os longas com informações da American Kennel Club, entidade norte-americana que classifica raças de cachorro no país, os pesquisadores concluíram que os filmes impactam, sim, na procura por certas raças, o que pode ser um problemão.

Segundo a Peta, é comum aumentar o número de animais abandonados após o lançamento de um blockbuster. O grupo Dogs Trust, que age em defesa de cães largados por seus donos no Reino Unido, registrou um aumento de 420% no número de cachorros da raça husky siberiano resgatados desde o início da série Game of Thrones, em 2011. Na ficção, os bichos são lobos; na vida real, fãs começaram a buscar por cães “parecidos” para ter em casa. O que muitos não sabem, porém, é que seu estilo de vida pode não ser compatível com o perfil dos huskies — que gostam de se movimentar, precisam de bastante espaço e demandam uma alimentação específica, com mais proteína.

Um cenário parecido pode voltar a acontecer com os dálmatas em 2021, quando chegará às telonas Cruella, um novo filme sobre a vilã de 101 Dálmatas. Organizações temem que bichinhos adquiridos por causa da produção também sejam deixados nas ruas. “Queremos impedir que mais cães sejam criados, comprados e depois largados em abrigos quando pessoas despreparadas perceberem a responsabilidade que é necessária para cuidar dos animais que elas adoraram ver na tela”, pontua Lauren Thomasson.

Em vez de incentivar que mais cachorros sejam comprados, ativistas defendem que a adoção seja estimulada. Uma oportunidade está na versão live-action de A Dama e o Vagabundo, que estreiou em novembro de 2019 nos Estados Unidos na Disney+, nova plataforma de streaming da Disney. O cão que representa o personagem vira-lata foi adotado em um abrigo para pets — e a iniciativa já está recebendo elogios nas redes sociais.

“Efeito Nemo”: fake news?

Embora influenciem no comportamento (e nos gostos) dos espectadores, muitas vezes os filmes de animais são alvos de informações falsas. Isso se aplica ao que ficou conhecido como “efeito Nemo”: após o lançamento de Procurando Nemo, em 2003, notícias denunciavam um aumento expressivo nas compras do peixe-palhaço, o Nemo, e do cirurgião-patela, a Dory. Mas não foi o que aconteceu de fato. Um estudo australiano, publicado na revista científica Fish and Fisheries em janeiro de 2017, concluiu que os números de importação e exportação mostram poucas evidências de compras feitas por fãs de peixes selvagens um ano e meio após o filme chegar aos cinemas. O mesmo cenário seria investigado, segundo os cientistas, com Procurando Dory, que estreou em 2016, mas ainda não há um veredicto.

Algo parecido aconteceu com as corujas, que teriam entrado na mira de fãs de Harry Potter. Uma pesquisa de 2017 publicada também no Plos One investigou se os filmes da saga afetaram o comércio desses pássaros no Reino Unido, já que o protagonista tem uma coruja-das-neves. Os autores cruzaram vendas de ingressos e livros, menções na imprensa e registros de propriedade legal do animal na Grã-Bretanha. Também analisaram casos de abandono. A conclusão foi que não houve impacto significativo: apenas duas das 46 instituições que funcionam como santuários para esses animais disseram ter recebido mais corujas que o habitual.

Que bom. Por mais divertidos e curiosos que sejam os filmes com bichinhos, melhor ainda é quando essas produções contribuem para que crianças e adultos entendam a importância de respeitar os animais — seja os selvagens, seja os nossos melhores amigos peludos.

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Tópicos: cinema, animal, selvagens