Daniela Mercury afina o ativismo no álbum "Baiana", mas a música resulta sem a força do discurso
05/12/2022 14h23Fonte G1
Imagem: DivulgaçãoClique para ampliarDaniela Mercury afina o ativismo no álbum "Baiana", mas a música resulta sem a força do discurso
Baiana é álbum afinado com o ativismo manifestado por Daniela Mercury com intensidade crescente ao longo dos últimos anos. Nas letras, a artista baiana exalta a força feminina da mulher brasileira – sobretudo a da mulher soteropolitana – e o vigor rítmico da nação nordestina, em especial de Salvador (BA), cidade onde a cantora e compositora veio ao mundo em 28 de julho de 1965.
A verborragia da maior parte das letras das 14 músicas do disco remete inclusive à fome antropofágica do álbum Vinil virtual (2015). Contudo, há em Baiana a unidade e a coerência que inexistiram no confuso disco de 2015.
Baiana até pode ser caracterizado como álbum conceitual porque há sólido fio que liga o discurso da primeira música – Mulheres do mundo (Daniela Mercury), na qual a artista mapeia riquezas do nordeste do Brasil sob prisma feminino, escorada na fusão de baticum e programações da faixa produzida por Juliano Valle com a própria Daniela – à narrativa da 14ª e última música, Aglomera.
Música de Daniela Mercury e Mikael Mutti, também produtores musicais da faixa, Aglomera vai atrás dos trios elétricos – veículos para a propagação dos temas agalopados e marchas-frevos que fizeram o Carnaval da Bahia no auge do gênero rotulado como axé music – para saudar a chegada da “primavera que renascerá do impossível chão”, como diz a letra com alusão a verso poético de Sonho impossível (The impossible dream – Joe Darion e Mitch Leigh, 1965, em versão em português de Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972).
O grande problema do álbum Baiana é que a música resulta sem a força do discurso. Falta no disco uma composição realmente inebriante, como tantas de álbuns como O canto da cidade (1992), Feijão com arroz (1996) e Balé mulato (2005), títulos sobressalentes na já irregular discografia de estúdio da cantora. Sob o viés estritamente musical, até o anterior Perfume (2020) exalou aroma de sedução indetectável em Baiana.
Sinalizada pelos singles que apresentaram as músicas O samba não pode esperar (Daniela Mercury) e Soteropolitanamente na moral (Mikael Mutti e Daniela Mercury), faixa que vai atrás do trio elétrico, a supremacia do discurso ativista em relação à música é recorrente ao longo das 14 faixas de Baiana.
Da atual safra autoral de Daniela Mercury, o samba-título Baiana merece menção honrosa, tendo sido valorizado na gravação pela cadência gerada pela produção musical orquestrada por Daniela com Yacoce Simões (teclados, violão, guitarra baiana acústica e programações de percussão, cordas e metais).
“Baiana de Salvador / Eu sou mulher / Católica de Candomblé / Trago o samba no peito / E o direito de me indignar / ... / Trago comigo a dor de minha gente / Que celebra a alegria / Mas segue a chorar”, se perfila Daniela na letra de Baiana, música que sintetiza o conceito de álbum tão político quanto feminino e... baiano.
Sim, a Bahia está entranhada no disco, seja quando Daniela professa a fé afro-brasileira, citando orixás e símbolos do Candomblé em Intimidade com a entidade (Mikael Mutti, Aila Menezes, Léo Reis, Deco Simões, Emerson Taquari e Sérgio Rocha) – boa composição, incrementada pela percussão de Léo Reis e pelo arranjo vocal da gravação feita com produção musical de Gabriel Póvoas – seja quando a cantora saúda um ilustre filho da terra em Caetano, filho do tempo (Daniela Mercury e Jaguar Andrade).
A letra deste tributo a Caetano Veloso cita versos de músicas como Tropicália (1967) e Alegria, alegria (1967) no estilo canibália da gravação feita pela artista com arranjo do produtor musical Jaguar Andrade (baixo, violão , guitarras , loops percussivos e edição) e a percussão precisa de Marcio Victor.
Música construída por Daniela a partir de texto do encenador teatral José Celso Martinez Correa, sendo assinada também por Fernando de Carvalho, Macunaíma também segue a linha canibália e persegue o pulso do rap no canto falado de letra que cita nominalmente Elza Soares (1930 – 2022), Elisa Lucinda e Fernanda Montenegro. O arranjo e a coprodução são de Juliano Valle.
Marca sonora do disco, o mix de percussões e sons sintetizados dá o tom de Deixa rolar, música inédita do compositor pernambucano Martins, também autor do ijexá Me dê (2019). Ambas as músicas foram formatadas por Mikael Mutti, nome recorrente no time de produtores musicais arregimentados por Daniela Mercury para a produção musical do álbum Baiana. Mutti também é o compositor de Disparo a flecha, outra faixa que coproduziu com a dona do disco.
Ao mesmo tempo em que ostenta unidade, o discurso de Baiana por vezes soa repetitivo. Samba de cadência suave, Engomadeira (Daniela Mercury e Jaguar Andrade) faz ode à cidade de Salvador sob o mesmo prisma feminino de outras músicas do álbum Baiana.
Além de Me dê (Martins, 2019), outras duas músicas são regravações no repertório quase inteiramente inédito. Samba que versa sobre a ilusão do Carnaval, e por isso mesmo merece estar em álbum gerado em cidade tão foliã como Salvador (BA), A felicidade (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959) reaparece com arranjo que sublinha o delicado toque do piano de Bruno Aranha e com natural evocação do clima da bossa nova.
Já Bombinha (Carlos Posada, 2021) vai surtir efeito sobretudo em quem desconhece a gravação original feita por Juliana Linhares no álbum Nordeste ficção (2021). Os sopros de Marcelus Leone sobressaem na gravação feita com arranjo do pianista Ubiratan Marques, produtor musical da faixa ao lado de Daniela Mercury, verdadeira baiana que, com a moral de ter levantado a voz contra o autoritarismo, reforça a necessária ideologia ao propagar neste farto álbum o canto ativista da cidade natal.
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