Dores e risos de Sérgio Sampaio se engrandecem no canto dramático de Cida Moreira
14/06/2023 16h35Fonte G1
Imagem: DivulgaçãoDores e risos de Sérgio Sampaio se engrandecem no canto dramático de Cida Moreira
Fala-se pouco de Sérgio Sampaio (13 de abril de 1947 – 15 de maio de 1994). Ouve-se menos ainda o cancioneiro autoral deste cantor e compositor capixaba que, a rigor, teve somente um único grande sucesso, Eu quero é botar meu bloco na rua, marcha que ganhou o público em agonizante festival de 1972 e abriu caminho para o artista gravar o primeiro álbum em 1973.
Decorridos 50 anos da edição do primeiro LP do artista, dois álbuns simultâneos – ambos lançados em 2 de junho – tentam jogar luz sobre obra calcada em emoções reais. Cida Moreira e Edy Star cantam Sérgio Sampaio em discos com abordagens e resultados distintos.
Com a voz menos potente e mais fanhosa, mas plena de entendimentos, a cantora paulistana de 71 anos abre mão dos trinados operísticos da década de 1980 para dramatizar os sentimentos das canções do compositor em álbum, Sérgio Sampaio – Poeta do riso e da dor, que concentra emoções e enfatiza a grandeza de obra que ameniza a recorrente desilusão do compositor com ironia quase cínica, como exemplifica a interpretação da música Na captura (1982), já apresentada em single editado em 26 de maio.
Intérprete teatral, Cida sabe realçar o sentido de cada canção no canto em permanente erupção, como já sinaliza uma das ilustrações da capa criada por Filipe Aca.
Sob a direção musical de Ivan Gomes (baixo) e Lê Coelho (guitarra e violão), ambos responsáveis pelos envolventes vocais que adornam Leros e leros e boleros (1973) sem ofuscar a voz de Cida, a artista exprime nesse canto eruptivo a desilusão resignada de Tem que acontecer (1976) – um balanço de (muitas) perdas e (poucos) ganhos feitos pelo compositor na música mais conhecida do artista depois da marcha de 1972 – e sustenta o acorde e a vertigem de Velho bode (1976, parceria de Sampaio com Sérgio Natureza), além de expor o silêncio claustrofóbico de Quatro paredes (1973).
Iniciativa do DJ Zé Pedro, diretor artístico da gravadora Joia Moderna, o disco de Cida Moreira é recorte, gravado em estúdio, do show Boleros e outras delícias (2019), calcado na obra de Sampaio, sendo que o título-epíteto Poeta do riso e da dor vem de verso do bolero Tolo fui eu (1982).
Já o disco de Edy Star, artista baiano de 85 anos, dissipa as dores e risos do cancioneiro de Sérgio Sampaio porque, sem real vocação para o canto, Edy é mais um performer do que um intérprete.
Em cena, pode ser que as interpretações do álbum Meu amigo Sérgio Sampaio ganhem (algum) sentido. No disco, editado pela gravadora Kuarup, o agridoce balanço existencial de Homem de trinta (1982) vai para o buraco da mesma forma que o artista deixa escapulir o sentimento de transcendência que há nas constatações feitas pelo poeta em Ninguém vive por mim (1977).
A questão está na inocuidade do canto de Edy Star. Diretor musical e arranjador do disco, o guitarrista Rovilson Pascoal exibe o habitual brilho ao atravessar intencionalmente o samba Cada lugar na sua coisa (1976) e ao entrar no campo do rock em Cabras pastando (1976), música gravada por Edy Star com a adesão de Zeca Baleiro.
O artista baiano canta Meu pobre blues (1974) – oferta de Sampaio para o conterrâneo Roberto Carlos, que ignorou a música – com o canto quente do guitarrista / violonista Renato Piau e põe o bloco na rua com Maria Alcina sem conseguir fazer de fato o Carnaval.
Bem mais certeira e inventiva, Cida Moreira recita somente uma estrofe da marcha – “Eu, por mim, queria isso e aquilo / Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso / É disso que eu preciso ou não é nada disso / Eu quero é todo mundo nesse carnaval” – no prólogo do álbum Sérgio Sampaio – Poeta do riso e da dor. E dá o recado, pela sagacidade de que a folia do compositor era interna.
Após a pista falsa desse esfuziante hit inicial de 1972, Sérgio Sampaio foi ser gauche na vida e no mercado, contrariando expectativas e escapando pelas frestas como o gato vadio da letra de A lua e semente (1976).
Essa é a diferença abissal entre os discos de Cida Moreira e Edy Star. A cantora captura e traduz no canto a ebulição da alma e da obra do compositor enquanto o performer deixa escorrer as emoções de um artista que, ao perceber a própria inadequação para atender os desejos das gravadoras e do próprio público conformista (e talvez tenha vindo dessa percepção a maior angústia do poeta), expiou todas as dores do mundo na música em inventário emocional feito com humor quase apaziguante.
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