Em busca de sintonia
30/04/2019 10h29Fonte Veja
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A participação reticente da maioria das orquestras brasileiras nas recentes manifestações em defesa das instituições culturais - ameaçadas pelo corte de recursos na esfera federal e no Estado de São Paulo - parece apontar para um problema bem mais grave. Sua pouca disposição em discutir as questões que afetam a cultura é um dado preocupante em tempos que nos obrigam a refletir sobre inclusão, diversidade e empatia como metas para todas as instituições públicas da área.
O arraigado hábito de não se conectar com a comunidade pode ser um risco e um sinal claro de falta de visão e compromisso social. O mundo rico talvez nos dê pistas de como é possível fazer diferente.
Na Hallé St. Peters, em Manchester, Inglaterra, amantes da dança de salão reúnem-se para uma tarde de entretenimento. A música que os embala é tocada por integrantes da Hallé Orchestra, uma das mais importantes da Inglaterra, fundada em 1858, e a atividade é um dos programas que a orquestra se orgulha de oferecer à comunidade.
O compromisso de educar e atuar em benefício de diferentes públicos, sobretudo os mais carentes, é tão essencial para sua existência que a orquestra restaurou duas igrejas para transformá-las em seus braços educacionais. A St. Peters é um deles. Mas isso não é tudo. O tema que inspira a série Hallé para a Juventude em 2019 é “Conflito e resolução”: os concertos abordarão, além das duas guerras mundiais, o bicentenário do massacre de Peterloo, ocorrido em Manchester, em 1819.
Parece estranho que uma orquestra desse porte tenha abraçado sua comunidade com tanta garra, inventividade e energia. Mas os ingleses foram pioneiros em construir programas que fizessem do público o principal ator da vida musical. Há quase trinta anos, a London Symphony se deu conta de que ninguém queria mais uma orquestra aborrecida e desconectada do que se passava à sua volta. Na igreja de St. Luke, polo educativo da orquestra, há excelentes exemplos de experiências para o público não familiarizado com a música clássica.
Quando, em 2002, o inglês Simon Rattle foi convidado a dirigir a Filarmônica de Berlim, sabia-se que a escolha de seu nome pelos músicos do conjunto levava em conta seu compromisso profundo com um modelo renovado de orquestra em que a educação tem papel central. Ele já afirmara que “ser artista, no século XXI, implica ser também um educador”. Seu compromisso com a música o transformara num defensor da educação e da acessibilidade como cernes da vida orquestral. Em pouco tempo, o conjunto alemão foi transformado em um centro inovador nessa matéria. Entre suas memoráveis iniciativas está o espetáculo Rhythm Is It, no qual a filarmônica acompanhou duas centenas de adolescentes berlinenses, nenhum deles bailarino, vindos de todas as áreas da cidade, em uma coreografia de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, criada pelo britânico Roystom Maldoon.
A exemplo do que já acontecia em Londres, em Berlim há uma enorme ênfase nas atividades corais. Várias orquestras têm criado programas para que seu público cante, reintroduzindo o princípio de que a música é para ser “feita”, e não só para ser ouvida e contemplada. A pressão por participar é incontrolável, e os gestores atentos e conectados com suas comunidades sabem que é preciso integrar os conjuntos com seu público de forma efetiva.
Do outro lado do Atlântico, o compromisso das orquestras com a educação e com a coletividade também mudou. Ainda em 2001, em visita à Orquestra Sinfônica de Chicago, ouvi de uma de suas diretoras que a transformação começara sob pressão: boa parte de seus patrocinadores já se incomodava em ver a orquestra dar as costas à cidade, cada vez mais violenta e com enormes problemas sociais. Em 2010, ao assumir a direção do conjunto, Riccardo Muti foi guindado à posição de diretor do Negaunee Music Institute, cuja missão é promover programas educativos e comunitários da orquestra. Ninguém, portanto, se surpreendeu quando o próprio Muti instituiu um programa para adolescentes e jovens encarcerados. É ele quem toca piano e dirige workshops e atividades criadas especialmente para ser desenvolvidas nas prisões.