Entre a ciência e a ideologia
02/05/2019 11h29Fonte G1
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Um mundo no qual todas as pessoas façam de conta que não existem determinações genéticas que tornam as mulheres diferentes dos homens é possível, e tem muita gente empenhada em fazer isso acontecer. Mas que algo seja possível não implica que este algo seja desejável.
Ainda que fosse verdadeira (e não é) a tese segundo a qual tudo é uma construção social, pois só existe cultura e a biologia é irrelevante, mulheres continuariam fazendo coisas que homens não são capazes de fazer, e vice-versa. Por exemplo, por doloroso que isso possa parecer para algumas pessoas, seres humanos que nasceram com o cromossoma “Y” não podem engravidar nem dar à luz: em outras palavras, homens, ainda que se identifiquem como mulheres, não podem ser mães. E não há discriminação nenhuma aqui, é apenas a dura realidade.
O exemplo é banal, mas diante da irracionalidade que tomou conta do debate sobre a ideologia de gênero, às vezes é necessário explicar o óbvio. No esporte, poucos anos atrás, seria inimaginável cogitar que indivíduos nascidos homens, ainda que “trocassem” de sexo, competissem em equipes femininas – não por preconceito, discriminação ou algo do gênero (sem trocadilho), mas pelo fato cientificamente incontestável de que níveis mais altos do hormônio masculino testosterona circulam no organismo desses indivíduos, o que lhes confere vantagens físicas (altura, força, estrutura óssea, massa muscular etc) sobre os indivíduos que nasceram mulheres. O resultado é uma competição desigual e injusta.
Isso não significa dizer que todas as diferenças entre homens e mulheres são determinadas pela biologia, nem que todas as convenções de gênero devem ser naturalizadas, nem muito menos que se deva apoiar qualquer tipo de discriminação. Mas a biologia importa e não pode ser descartada: existem diferenças que são culturais, mas também existem diferenças que são inatas. Psicóloga e professora de filosofia da ciência na Universidade de Melbourne, na Austrália, Cordelia Fine está certa quando afirma, em “Testosterona Rex – Mitos de sexo, ciência e sociedade” (Três Estrelas, 336 pgs. R$ 62,90), que o sexo é apenas um dos muitos fatores que se combinam, de forma dinâmica, para dar origem ao comportamento de homens e mulheres. Mas negar que o sexo biológico exerce uma influência fundamental no desenvolvimento de cada indivíduo é simplesmente ridículo.
Leia aqui um trecho de “Testosterona Rex”.
Da primeira à última página, “Testosterona Rex” se empenha em demonstrar que, como exige certo feminismo, as desigualdades entre os sexos na sociedade são inteiramente culturais. Combinando elementos da neurociência, da psicologia e da História social, é um livro de divulgação científica, escrito em linguagem informal e bem humorada, o que pode justificar a superficialidade com que a autora fundamenta suas teses. Mas o fato é que Cordelia, também autora de “Homens não são de Marte, mulheres não são de Vênus”, é extremamente seletiva ao citar descobertas recentes que reforçam a sua premissa, deixando de lado toneladas de pesquisas que vão no sentido contrário, de forma a induzir o leitor a chegar às suas mesmas conclusões. Mas a conclusão do livro é, na verdade, a sua premissa: os conceitos de “masculino” e “feminino” são somente convenções sociais e culturais. E quem discordar disso é machista, misógino etc: é a velha intolerância, que desqualifica a diferença, embutida em um discurso que afirma pregar a tolerância.
Confundindo ciência e ideologia, Cordelia Fine parece revoltada com o fato de que homens e mulheres são diferentes em muitos aspectos (são semelhantes em muitos aspectos também, é óbvio, mas não são semelhantes em todos os aspectos). Essas diferenças e semelhanças foram determinadas pela natureza, por pressões evolutivas e por processos de seleção sexual que vêm de um passado ancestral (e, no caso das diferenças culturais, ao longo de milênios de transformação). É óbvio que a sociedade deve ser continuamente aprimorada, e não somente na relação entre os sexos; mas essas mudanças não acontecem por decreto, nem pela vontade imperial de um grupo social qualquer.
Ou seja, julgando criticar o sexismo da ciência, a autora cai na armadilha do sexismo às avessas, que descarta qualquer dado científico ou opinião que não corrobore as suas teses. Ela reconhece, por outro lado, que o princípio da igualdade dos sexos – segundo o qual os direitos e oportunidades devem ser iguais, independente da genitália – está “razoavelmente bem entrincheirado nas sociedades ocidentais contemporâneas”, fato que não parece irrelevante, mas que recebe pouquíssima atenção da autora.
Resumindo, embora não se aprofunde muito nos pontos mais controversos do debate sobre a ideologia de gênero, “Testosterona Rex” (sintomaticamente ganhador do Royal Society Science Book Prize de 2017) é um livro que se integra claramente ao esforço orquestrado em curso para se estabelecer um novo senso comum, uma nova hegemonia em relação a valores e ideias ligados às convenções sociais e às relações afetivas, sexuais, amorosas e familiares. Por barulhenta que seja, e por substancial que seja o espaço que a mídia lhe concede, essa campanha, no fundo, só reverbera em um grupo social bastante modesto, em termos absolutos, mas que constitui maioria nos meios acadêmico e artístico, entre outros.
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