Jards Macalé é interpretado, em livro, como personagem crucial da música brasileira
09/01/2021 16h50Fonte Globo.com
Imagem: José de HolandaJards Macalé é interpretado, em livro, como personagem crucial da música brasileira
Autor de Jards Macalé – Eu só faço o quero, livro lançado em dezembro de 2020 pela Numa Editora, o escritor Fred Coelho caracteriza apropriadamente a obra como ensaio biográfico.
De fato, embora o texto repise os principais caminhos profissionais de Macalé, com justa ênfase na produção do artista nos anos 1960 e 1970, o livro extrapola o formato mais ortodoxo das biografias por oferecer interpretação da posição relevante ocupada por Macalé no universo musical brasileiro.
Justamente por ter feito ensaio biográfico, Coelho se permite contextualizar (às vezes de forma alongada) nomes e fatos que cruzaram a trajetória de Macalé.
Mais frequentes na primeira metade do livro, tais contextualizações por vezes prejudicam a fluência da narrativa essencialmente cronológica, embora o ponto de partida do livro seja o evento midiático orquestrado por Macalé em 1974 em barca posta nas águas fluminenses para promover o segundo álbum do artista, Aprender a nadar, lançado naquele ano.
Por outro lado, a exposição do contexto musical e social em que atua Macalé é fundamental para a exposição da importância crucial desse cantor, compositor e músico carioca nascido em 3 de março de 1943.
Ainda que ofereça detalhes preciosos da vida pessoal de Jards Anet da Silva (como a afinidade com a mãe, Lygia, e o atrito com o pai militar morto quando o filho ainda era adolescente), Coelho direciona o foco do texto primordialmente para o artista.
E, nesse direcionamento, o grande trunfo do livro é enfatizar que, à frente de Jards Anet, existe Macalé, personagem quase folclórico, provocador, figura de temperamento notoriamente forte, um quase malandro que logo se enturmou com Moreira da Silva (1902 – 2000), mas que, em essência, é personagem que parece sair de cena no cotidiano vivido por Jards Anet fora dos holofotes. A arte gráfica da capa reforça o foco do autor ao enfatizar em vermelho a grafia do sobrenome artístico Macalé.
Na narrativa apresentada em exatas 500 páginas, o autor deixa claro que a pecha de maldito atribuída a Macalé nos anos 1970 é fruto menos da natureza do artista e mais da retaliação de diretores que comandavam indústria musical refratária a qualquer ato de rebeldia contra o sistema fonográfico.
Em bom português, Macalé teria sido amaldiçoado por defender a independência artística enfatizada já no título do livro Jards Macalé – Eu só faço o quero.
Macalé de fato sempre fez o que quis e, em 1979, ao esboçar diálogo com militares do governo do então presidente do Brasil João Figueiredo (1918 – 1999), se viu isolado no meio artístico, mesmo sempre tendo se alinhado com ideologias de esquerda.
Embora sempre tome partido do artista, Coelho jamais se exime de expor impaciências e rompantes de Macalé que contribuíram para fechar portas para o artista nas gravadoras. Tivesse aguentado o chá de cadeira que lhe deu em 1977 o executivo João Araújo (1935 – 2013) na gravadora Som Livre, em vez de derrubar a bandeja com café que lhe fora oferecida para amenizar a espera na antessala da companhia, Macalé talvez não tivesse perdido o apoio de Araújo, que bancara a gravação e edição do primeiro disco do cantor (Só morto / Burning night, single quádruplo gravado em 1969 pela RGE) e avalizara o lançamento na Som Livre do terceiro álbum de Macalé, Contrastes (1977).
Do ponto de vista bibliográfico, a maior contribuição do livro é detalhar a atuação profissional de Macalé até 1969, ano em que o artista assombrou o público do IV Festival Internacional da Canção (FIC) com apresentação performática da música Gothan city (Jards Macalé e José Carlos Capinan, 1969).
A personagem Macalé – ou Makalé, como determinou Jards em algumas passagens da vida artística – ganhou atenção e notoriedade naquele momento. Mas o artista já atuava na música desde 1959, ano em que fundou o duo inicialmente amador Dois no Balanço com Chiquinho Araújo, filho do maestro Severino Araújo (1917 – 2012).
Ao longo dos anos 1960, Macalé desenvolveu relações musicais como os então novos baianos Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Essas conexões são esmiuçadas por Fred Coelho como (mais uma) prova da atuação de Macalé como personagem fundamental da MPB fomentada a partir da segunda metade dos anos 1960.
A interação do artista com Gal, de quem chegou a dirigir show, foi especialmente relevante no alvorecer da década de 1970 para firmar a cantora como uma voz da contracultura. Com Caetano, Macalé atuou decisivamente na direção musical do cultuado álbum Transa (1972), gravado por Caetano em 1971 durante no exílio em Londres. Como enfoca o artista Macalé, e não Jards Anet, o escritor omite o desentendimento que o afastou por décadas de Bethânia.
Em contrapartida, a análise pertinente da obra construída por Macalé entre 1968 e 1977 valoriza o livro e redime Coelho de eventuais imprecisões como afirmar que o primeiro disco de Bethânia saiu pela RGE, quando foi editado pela RCA em 1965, e como incluir o álbum Construção na leva de lançamentos relevantes de 1972 quando se sabe que o LP de Chico Buarque foi editado em 1971.
Como a obra de Macalé ainda está em progresso (há três álbuns previstos para 2021, inclusive um disco de músicas inéditas a ser gravado com João Donato), Fred Coelho tem a sabedoria de deixar a narrativa em aberto, ainda que qualquer leitor do livro conclua imediatamente que Jards Macalé foi e é mais importante na música brasileira do que se supõe.