João Fênix se afina com o pianista Luiz Otávio no roteiro melodramático do álbum Gotas de sangue

25/07/2021 15h58


Fonte G1

 
Imagem: ReproduçãoClique para ampliarA presença de Algemas (2000) ? outra (grande) música obscura do cancioneiro do compositor Ivor Lancellotti ? valoriza o disco, sinalizando que o cantor poderia ter sido mais ousado(Imagem:Reprodução)

O sétimo álbum de João Fênix, Gotas de sangue, já teria razão de ser somente por lapidar joia rara da parceria do compositor carioca Ivor Lancellotti com o baiano Roque Ferreira, Quixeramobim (2016), música apresentada há cinco anos na voz opaca de Ivor, em gravação feita pelo autor para o álbum Tudo que eu quis (2016).

Com o canto maturado em trajetória que ganhou relevo há 25 anos quando a voz andrógina do artista sobressaiu entre o elenco do musical de teatro Os quatro carreirinhas (1996), encenado na cidade do Rio de Janeiro (RJ) sob direção de Wolf Maya, Fênix eleva Quixeramobim à outra dimensão em registro de câmara feito pelo intérprete com o pianista Luiz Otávio.

Luiz Otávio é o partner de Fênix neste disco de voz e piano, posto em rotação na sexta-feira, 23 de julho, em edição da gravadora Biscoito Fino. É como se as veredas dos grandes “sertões de Deus” mencionados na letra conduzissem Quixeramobim a uma sala de concerto.

Antecedido em 9 de julho pelo single com gravação de Gota de sangue (1979) em que cantor e pianista emularam as intenções da gravação original da canção de Angela Ro Ro, o álbum chega ao mundo no ano em que a discografia de Fênix completa duas décadas.

Iniciada com a edição do CD Eu, causa e efeito (2001), a obra fonográfica do artista perdeu fôlego ao longo dos primeiros 15 anos pela insistência do cantor em enfatizar obra como compositor.

A discografia de Fênix entrou novamente no tom com o álbum de intérprete sintomaticamente intitulado De volta ao começo (2016), gravado com produção musical do mesmo Jaime Alem que orquestrou o atual disco de voz e piano.

Mesmo sem o arrojo politizado do álbum anterior de Fênix, Minha boca não tem nome (2018), ápice da trajetória do artista pela contundência do repertório majoritariamente inédito, Gotas de sangue se impõe como um dos melhores discos do artista, ancorado no porto seguro de composições infalíveis como Lígia (Antonio Carlos Jobim, 1974) e Ternura antiga (Ribamar e Dolores Duran, 1960).

Na abordagem de Lígia, o toque do piano de Luiz Otávio – grande revelação do disco como instrumentista de precisão na união de técnica e sentimento – sugere clima à meia-luz na breve passagem instrumental da faixa.

Sem se aprisionar em um único ambiente, o álbum Gotas de sangue verte lágrimas em outras atmosferas, coerentes com a ideologia de Fênix, cuja conversão à religião afro-brasileira lhe confere autoridade para cantar um afro-samba como Tristeza e solidão (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1966) sem a matriz percussiva do gênero.

Canção que projetou Zeca Veloso como compositor, Todo homem (2017) ressurge em registro inicialmente grave que expõe a dualidade da (nem sempre) feminina voz do cantor. Expressa no contraste entre o preto e o branco, mote das fotos feitas por Leo Aversa para promover o disco, a dualidade vocal do cantor está entranhada em Gotas de sangue sem exibicionismos, embora prevaleça o registro mais agudo.

A presença de Algemas (2000) – outra (grande) música obscura do cancioneiro do compositor Ivor Lancellotti – valoriza o disco, sinalizando que o cantor poderia ter sido mais ousado na seleção do repertório.

Por mais que todas as dez canções façam sentido no roteiro sentimental do álbum e/ou na memória afetiva do artista, Fênix nada acrescenta a uma música já tão associada ao autor, caso de O portão (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1974). O sucesso de Roberto Carlos simboliza instante de felicidade em roteiro pautado pela tristeza.

Nesse roteiro, a cadência chorosa do samba Desalento (Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1970) se afina com o sofrimento da canção Sem você (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959) em momentos que, embora corretos do ponto de vista técnico, reiteram que Fênix poderia ter corrido mais riscos ao escolher o repertório do álbum Gotas de sangue.

Impulsionado pela sintonia entre cantor e pianista, o melodrama narrado em Gotas de sangue poderia ter seguido roteiro que se mantivesse surpreendente como o registro sublime de Quixeramobim na abertura do álbum. O que jamais tira o mérito deste disco em que, com a cabeça descoberta, João Fênix se mostra nu com a música, à vontade com a voz andrógina e afinado com o piano preciso de Luiz Otávio.


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