Juçara Marçal é carne viva que se move no passo desarmônico do álbum "Delta Estácio blues"

30/09/2021 16h27


Fonte G1

Imagem: Aline BelfortJuçara Marçal(Imagem:Aline Belfort)Juçara Marçal

Juçara Marçal viu a cara da morte no primeiro álbum solo, Encarnado (2014), e saiu imensamente viva desse disco antológico em que a artista enfiou a navalha na carne ao versar sobre a finitude do ser humano.

É em carne viva que a cantora e compositora fluminense de 59 anos se move no passo torto de Delta Estácio blues, segundo ruidoso álbum solo da integrante do Metá Metá, trio paulistano com o qual Juçara já gravou álbuns, EP e a trilha sonora de balé do Grupo Corpo.

Delta Estácio blues chega ao mundo digital nesta quinta-feira, 30 de setembro, com munição certeira para seguidores e detratores da cena musical paulistana do século XXI por ir além das convenções, expandindo o formato das canções.

Nascida em 1962 no município de Duque de Caxias (RJ), mas residente em São Paulo (SP), cidade à qual é artisticamente associada, Juçara Marçal debutou no mercado fonográfico com Padê (2008), disco dividido com o mesmo Kiko Dinucci que arquitetou a densa atmosfera eletrônica de Delta Estácio blues ao manejar samplers, sintetizadores e guitarra para – na função de produtor musical do disco – moldar sonoridade industrial e experimental que evoca as dissonâncias do Metá Metá em faixas de digestão mais difícil como Baleia (Juçara Marçal, Maria Beraldo e Kiko Dinucci).

Também pilotando samplers, Juçara Marçal apresenta álbum criado com ruídos, colagens sonoras, dissonâncias, desarmonias e cacofonias que dão formas pouco ou nada usuais a repertório em que a artista se mostra mais presente como compositora, estendendo obra amplificada a partir do terceiro álbum do Metá Metá, MM 3 (2016).

Ainda que menos impactante e coeso do que o antecessor Encarnado, porque nem todas as 11 faixas têm o mesmo peso e surtem efeito igual, o álbum Delta Estácio blues é imponente e se engrandece quando o arsenal eletrônico de Dinucci potencializa o efeito das músicas sem anular totalmente a canção como gênero.

A potência é elevada ao máximo em Sem cais (Juçara Marçal, Negro Leo e Kiko Dinucci), faixa de versos inicialmente declamados. Sem cais flagra a nau de Juçara Marçal sem rumo e sem porto seguro em meio a ventres sem sementes, desilusões e loucuras inqualificáveis por emojis.

A potência do disco Delta Estácio blues já tinha se mostrado igualmente alta no single de peso que deu em 2 de setembro a primeira amostra do álbum ao apresentar a gravação de Crash, colérico flerte com o hip hop em que a cantora dá voz a uma composição inédita de Rodrigo Hayashi, o rapper cronista da cinzenta cidade de São Paulo (SP) conhecido como Ogi.

Parceria de Juçara Marçal com o sambista da garoa Douglas Germano e com Dinucci, Corpus Christi mapeia São Paulo além das fronteiras da cidade-capital, mas dentro da atmosfera de desencanto em que se ambienta Delta Estácio blues.

Em latitude mais distante, Rodrigo Campos abre alas, no transamba que batiza o disco, ao conectar o seminal bluesman norte-americano Robert Johnson (1911 – 1936) – lenda do Mississipi (EUA) – com Alcebíades Maia Barcelos (1902 – 1975), o Bide, com Osvaldo Caetano Vasques (1913 – 1935), o pouco lembrado Baiaco e com Ismael Silva (1905 – 1978), pioneiros bambas fluminenses do Estácio pagão, berço do samba carioca que ecoa o mesmo lamento negro do blues. Com o choro da cuíca de Paulinho Bicolor, Delta Estácio blues é composição assinada por Campos com Juçara e Dinucci.

Entre tantas intencionais e ruidosas desarmonias, brilha a melodia de Vi de relance a coroa (Siba Veloso), maracatu de refrão envolvente, e flui bem o assombrado fluxo memorialista de Lembranças que guardei, canção de atmosfera menos incisiva, composta e interpretada por Juçara com Fernando Catatau, celebrado guitarrista do grupo cearense Cidadão Instigado. Dinucci também está creditado como autor da música, gravada com o toque da guitarra de Catatau.

Já Ladra consegue delinear a assinatura da autora Tulipa Ruiz entre ecos da sintaxe vanguardista e paulistana de Itamar Assumpção (1949 – 2003). E por falar em vanguarda, Juçara eleva o tom experimental de Delta Estácio blues nas duas regravações do álbum.

Em Oi, cat (Tantão, 2017), nem o efeito que tornou o canto da artista artificialmente grave disfarça o fato de que a abordagem de Juçara pouco acrescenta à gravação original feita pelo trio carioca Tantão e os Fita no álbum Espectro (2017), lançado há quatro anos pelo mesmo selo fonográfico, QTV, que edita Delta Estácio blues.

Já La femme à barbe (Brigitte Fontaine, Jacques Higelin, Edith Fambuena e Jean Louis Pierot, 1995) afina a artista com os experimentos musicais da cantora e compositora francesa Brigitte Fontaine, voz da vanguarda de Paris.

No fecho do álbum, o tema Iyalode Mbe Mbe (Juçara Marçal e Kiko Dinucci) soa como mantra afro-brasileiro ao sintetizar o batuque de tambores que remetem aos sons ancestrais africanos que desembocaram tanto no blues do Delta como no samba do Estácio, conectando Juçara Marçal ao universo matricial negro neste disco corpulento que expõe a artista em carne viva.

Para ler mais notícias do FlorianoNews, clique em florianonews.com/noticias. Siga também o FlorianoNews no Twitter e no Facebook

Tópicos: ?lbum, est?cio, mar?al