Laurentino Gomes: "Um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo"

27/12/2019 10h59


Fonte Revista Galileu

Imagem: ReproduçãoClique para ampliarLaurentino Gomes:

Durante mais de três séculos, o Brasil foi protagonista de uma das maiores atrocidades da história: dos 12,5 milhões de pessoas que foram transportadas à força da África para as Américas, 4,9 milhões desembarcaram em território nacional para serem escravizadas em grandes plantações de cana-de-açúcar e café, nas minas que extraíam metais preciosos ou para servirem às casas de seus “senhores” brancos.

Ao menos 2 milhões de habitantes de diversos territórios do continente africano nem sequer completaram a travessia pelo Oceano Atlântico e morreram em navios que amontoavam humanos como simples mercadorias. Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, os reflexos desse período histórico não são difíceis de perceber: dados recentes do IBGE indicam que entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros. De acordo com informações do Atlas da Violência divulgado em 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras.

Autor das premiadas obras "1808", "1822" e "1889", que resgatam detalhes da história brasileira, o escritor paranaense Laurentino Gomes se deu conta de que o assunto mais importante do passado nacional não eram os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. Era a escravidão. “Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas”, afirma.

E foi pensando nisso que ele escreveu "Escravidão: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares", livro lançado em setembro pela Globo Livros e que é o primeiro volume da trilogia que resgata o processo econômico, político e social que envolveu os séculos de escravidão no Brasil.

Para realizar a obra, Gomes consultou centenas de documentos históricos e viajou por 12 países em três continentes, passando por locais como a Serra da Barriga, onde se localizava o Quilombo dos Palmares, até fortificações nas quais os escravos aguardavam os navios responsáveis pelo tráfico.

Defensor das cotas preferenciais para afrodescendentes, ele acredita que o preconceito ainda presente em nosso país deve ser combatido por meio do estudo da nossa história. “Esse é um assunto ainda vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta.”

A seguir, leia a entrevista completa com o escritor.

Como surgiu o interesse de escrever sobre a escravidão no Brasil?

Eu tinha planos de escrever sobre a escravidão desde que comecei a pesquisar meu primeiro livro, 12 anos atrás. Ao tentar descrever o que era o Brasil em 1808, ano da chegada da corte de Dom João VI ao Rio de Janeiro, me dei conta de que o tráfico negreiro e o uso intensivo de cativos africanos tinham sido a principal característica da colônia portuguesa nos três séculos anteriores.

Essa mesma percepção se repetiu ao me debruçar sobre as duas datas seguintes, 1822 e 1889. É quase impossível explicar o processo de independência, o primeiro e o segundo reinados e, depois, a Proclamação da República sem estudar a escravidão. É como se fosse o fio condutor dos nossos principais eventos históricos.

Era um tema totalmente relacionado com suas obras anteriores...
No livro "1822", por exemplo, explico que o Brasil se manteve como monarquia depois da independência devido à soma de dois medos: o de uma guerra civil republicana que dividisse o país, a exemplo do que estava ocorrendo na América Espanhola, e o de uma guerra étnica, em que os escravos pegassem em armas contra seus senhores.

Esses dois medos fizeram com que a elite rural escravista brasileira cerrasse fileiras para que o futuro imperador Pedro I rompesse os vínculos com Portugal, mas mantivesse intacta a estrutura social vigente, sobretudo a escravidão e o tráfico negreiro.

Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros, entender quem teve acesso a oportunidades e privilégios ao longo desses últimos 500 anos e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral na Bahia até os dias de hoje.

Ao fazer esse mergulho profundo, me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e o modo como nos relacionamos com elas.

"Para entender como chegamos até aqui é preciso ir além da superfície, observar o que fizemos aos nossos índios e negros"


Você trabalhou ao longo de seis anos nesse novo projeto. O que foi mais desafiador durante o processo?

No Brasil, tornou-se uma ideia comum que os documentos da escravidão teriam sido destruídos e estariam malconservados, o que tornaria o estudo do tema difícil, quando não impossível. Isso é verdade apenas em parte.

De fato, parte da documentação histórica, relacionada aos registros de compra e venda de escravos na antiga Alfândega do Rio de Janeiro, foi destruída por ordem de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, logo depois da proclamação da República. Com essa medida, os republicanos queriam, como se dizia na época, “apagar uma mancha” na história brasileira, o que, obviamente, foi inútil, porque a “mancha” nunca se apagou.

Mas, apesar disso, restaram inúmeras outras fontes preciosas, relativamente intactas e pouco exploradas. Isso inclui inquéritos policiais e processos na Justiça envolvendo os escravos e seus senhores; testamentos e inventários pós-morte; certidões de batismo, casamento e óbito; anúncios de fuga ou de compra e venda de cativos registrados nos jornais da época ou em documentação cartorial.

Hoje já se sabe com relativa precisão quantos eram e de que regiões saíam os escravos, quantos morreram no caminho e quantos chegaram ao Brasil e aos demais territórios da América.

Houve algum momento de comoção ao realizar o trabalho de pesquisa?

Fiquei particularmente tocado ao visitar as fortificações do tráfico de escravos na costa da África. Existem dezenas delas, em especial na atual República de Gana. Eram depósitos de seres humanos, onde milhares e milhares de africanos escravizados ficavam à espera da chegada dos navios negreiros como se fossem mercadorias prontas para serem distribuídas aos seus novos donos e compradores.

Um dos maiores e mais antigos é o castelo de São Jorge de Elmina. Dali saíram os antepassados da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. Seus porões são visitados hoje por turistas afrodescendentes norte-americanos, que ali depositam coroas de flores em memória aos que partiram ou morreram.

Passei algum tempo sozinho num desses porões, um lugar úmido, frio, muito escuro, onde ficavam as mulheres. Algumas chegavam ali grávidas e davam à luz enquanto aguardavam para ser transferidas para um navio sujo, desconfortável e perigoso. Ali também amamentavam seus filhos recém-nascidos. Muitas morriam de fome, de doenças ou de desespero.

Foi uma experiência que me cortou o coração. Tive seguidas noites de insônia e pesadelos depois de passar por lá. Mas acho também que ninguém pesquisa e escreve um livro sobre a escravidão como se tivesse dando um passeio. Essa é, basicamente, uma história de dor e sofrimento. E para entendê-la precisamos nos aproximar dessa dor e desse sofrimento.

Como tem sido a recepção de sua obra pelo público e pela academia?

Já fiz lançamentos em diversos estados e cidades, incluindo, por exemplo, Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, e Salvador, a maior cidade africana fora da África. As pessoas têm demonstrado um interesse muito grande pelo tema.

Acredito que essa obra pode inspirar algum traço de racionalidade numa discussão que, nas redes sociais e nos pronunciamentos políticos, muitas vezes se resume a gritaria, polarização e intolerância. Apesar do fôlego aparente, em três volumes, esta série de livros não pretende nem poderia ser um estudo exaustivo ou definitivo da escravidão. Seria impossível, além de arrogante, qualquer tentativa de esgotar um assunto tão vasto, importante e premente, embora numa obra que, no conjunto, terá cerca de 1,5 mil páginas.

Meu propósito é destacar e explicar alguns aspectos que julgo importantes na análise do tema seguindo a fórmula já utilizada nos livros anteriores, mediante o uso de linguagem jornalística, simples e fácil de entender. Ou seja, mais uma vez quero ser um “abridor de portas”, especialmente para leitores jovens, mais leigos, ou que nunca se interessaram pelo assunto.

Sua obra explica que foi apenas na América que surgiu uma ideologia racista baseada na cor da pele para legitimar a escravidão. Como é possível superar esse preconceito ainda persistente?

A melhor maneira de enfrentar esses desafios é por meio do estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. Uma sociedade ou um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo porque desconhece suas raízes. Como não sabe de onde veio, provavelmente também não saberá o que (ou quem) é hoje e muito menos o que será no futuro.

Só pelo estudo de história será possível preparar — ou qualificar — os cidadãos brasileiros para a difícil tarefa de fazer escolhas e organizar a realização do país dos nossos sonhos. Isso inclui o racismo e o passivo social resultante da escravidão. Esse não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais, nas discussões diárias que aparecem nas redes. É uma ferida que continua aberta entre nós. E que ainda dói muito porque nunca foi devidamente tratada.

Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Isso o Brasil jamais fez.

E como todos esses fatores se refletem em nosso presente?

Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e nos indicadores sociais, em que a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade que tem menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira.

Um segundo legado da escravidão é o preconceito. É uma das marcas terríveis das nossas relações sociais, embora sempre procuremos disfarçá-la construindo mitos a respeito de nós mesmos — por exemplo, a ilusão de que seríamos uma grande e exemplar democracia racial. O noticiário do dia a dia se encarrega de desmentir isso. É um tema que incomoda muita gente, porque desmente os nossos mitos mais arraigados.


Qual é sua opinião sobre a política de cotas no Brasil?

Sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada. Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada.

A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes.

Há ainda muita reação contrária...

Um dos argumentos contrários à política de cotas, presente até em discursos de altas autoridades da República, tenta culpar os escravos pela própria escravidão. Muita gente afirma que, se os africanos participaram da escravidão e lucraram com ela, não haveria razão para manter no Brasil, por exemplo, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria por que indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso.

Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.


Como é sua rotina de trabalho e onde você busca inspiração?

Antes eu fazia reportagens para jornais e revistas, agora faço livros-reportagem. Mas a essência do meu trabalho continua a mesma, o jornalismo. Convivia com muitos colegas nas redações. Era um ambiente mais animado e barulhento. Hoje, meu trabalho é mais solitário. Mas prefiro assim.

Gosto de pesquisar e pensar sozinho a respeito do que pretendo fazer. E gosto mais de ler do que escrever. É na poesia e nos romances que encontro a verdadeira inspiração para escrever. A literatura de ficção permite um mergulho mais profundo na alma humana do que os livros de não ficção, que, em geral, são obras de natureza técnica.

Leio e releio muito Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pablo Neruda. Meus romances preferidos são "Sagarana", de João Guimarães Rosa, e "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez.

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