Marcelo D2: "É um exercício diário não ser um machista hétero babaca"

29/05/2019 13h59


Fonte Revista Marie Claire

Imagem: Caroline LimaMarcelo D2(Imagem:Caroline Lima)

Foi preciso muita terapia para que ele se reconhecesse como privilegiado. Criado pela mãe no pé do morro do Andaraí, na zona norte do Rio, cultivava quando jovem uma raiva de tudo e de todos que explodia toda vez que se via envolvido em um conflito. E não tinha como ser diferente. Sua mãe, dona Paulete, cresceu assistindo ao próprio pai bater na mulher na frente dos filhos. Do lado paterno, a história foi diferente, mas nem por isso mais branda: sua avó morreu durante o parto da filha caçula, deixando seu pai, o filho mais velho, responsável pela criação dos seis irmãos. Na hora de criar sua própria família, ele fez diferente: levou o aprendizado de seis anos de divã para dentro de casa e ensinou aos filhos a honrar cada conquista, sem nunca esquecer de onde vieram. Pobre e da favela, escolheu a música e a arte como saída do destino traçado a caras como ele – muitos de seus amigos de infância entraram para o crime e tiveram a vida interrompida bem antes de vê-lo fazer sucesso.

Eleito artista do ano de 2018 pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), Marcelo Maldonado Gomes Peixoto, o Marcelo D2, 51 anos, deu início a sua história com a música aos 23, quando já tinha Stephan, seu primeiro filho – ele ainda é pai de Lourdes, 19, Luca, 16, e Maria Joana, 14. Em 1993, quando trabalhava como camelô, conheceu o rapper Luís Antônio da Silva Machado – o Skunk, morto no ano seguinte vítima de complicações da AIDS – e, juntos, formaram o Planet Hemp. Com BNegão e Black Alien, a banda estourou no cenário nacional nos anos 1990 e levou D2 ao estrelato.

Suas letras em prol da legalização da maconha causaram a prisão dos integrantes do grupo em 1997, em Brasília, acusados de apologia às drogas. Em 2011, o episódio foi lembrado com pesar pelo então ministro do STF Celso de Mello, que considerou a prisão uma “interferência brutal do processo de produção intelectual e artística”.

No ano passado, o debate político em torno das eleições presidenciais ganhou ares de Fla × Flu com a internet e a poderosa fábrica brasileira de memes: heróis e vilões foram designados a cada um dos lados, ainda que contra sua vontade. Com D2 não foi diferente, suas pensatas e discussões com o então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro e seus apoiadores via Twitter foram replicadas incansavelmente pela turma do lacre virtual e o músico foi lançado ao posto de “artista-bacana-da-esquerda” pelos antiBolsonaristas, alcunha que nega com veemência; tanto de herói como de esquerda. “É muito difícil quando você fala em esquerda porque parece que você é PT, né? E não é isso”, diz.

Um dia antes do primeiro show do novo disco Amar é para os fortes, Marcelo recebeu Marie Claire de jeans e camiseta em um hotel em São Paulo para a entrevista a seguir.

MARIE CLAIRE O rap sempre teve um papel de crítica social muito forte, e agora existe rap com discurso conservador. O que você acha disso?
MARCELO D2 Não pode, porra. Isso não é rap, é um tiro no pé. Faço rap há 25 anos e os caras agora tão fazendo uma merda dessas? Eu não sei quem tá fazendo, mas pelo amor de Deus! Rap tem a ver com discurso, e discurso de opressor no rap não pode. Bota aí: Marcelo D2 proibiu vocês de fazer rap.

MC Você enxerga machismo no seu trabalho?
MD2 Em alguns lugares, sim. Tem uma música do Planet [Hemp, banda que comandou por mais de 20 anos] que se chama “Puta disfarçada” que eu tenho vergonha, a gente não canta desde 95. Eu fui criado por mulheres que tinham uma atitude superfeminista, mas tinham um discurso machista. Eu tenho duas filhas, é um exercício diário não ser um machista, eu peço desculpa internamente e o que eu posso fazer daqui pra frente é me policiar e tentar mudar. Dá vergonha, tá ligado?

MC Você ouve suas filhas nesse aspecto?
MD2 Pra caramba! Minhas filhas me dão esporro e eu peço perdão. Minha filha é superfeminista, a de 19, vai a passeatas, toca tambor, grita no megafone, acho bonito pra caramba. Outro dia, falei pra ela: “Eu queria ser mulher nesse momento, pra brigar”. Porque eu gosto de brigar, né? [Risos] Mas não me pertence, o máximo que posso fazer é tentar não ser um machista hétero babaca.

MC Você é ciumento?
MD2 Acho que sou, mas não assumo. [Risos] Sou escorpião, cara, sou um pouco possessivo.

MC Você já fez seu mapa astral?
MD2 Minha filha é hippie, né, cara. [Risos] Toda hora ela fala: “Olha o escorpião aí, ó”. Ela me bota isso na cabeça direto. “Ó, tá agindo como escorpiano.” Mas eu tento me policiar com meu ciúme.

MC Com as suas namoradas também?
MD2 Eu tento ser o mínimo possível. “Namoradas”, parece que eu tenho um harém, né? [Risos]

MC Tem?
MD2 Não. [Risos] Eu tô namorando, cara.

MC
Quem?
MD2 Luiza Machado. Carioca, produtora.

MC Há quanto tempo?
MD2 Cinco meses. Depois de 20 anos casado.

MC Você terminou faz quanto tempo?
MD2 Seis meses. [Risos] Não sei ficar sozinho muito tempo. Casei com 19 e até hoje tô grudado em alguém.

MC Já tentou?
MD2 Não. A vida só é um saco. Eu preciso de alguém, gosto de dividir.

MC Você já traiu? Já foi traído?
MD2 Já traí e já fui traído. Segue o jogo, tá ligado?

MC O que você faz para se cuidar?
MD2 Sou muito ansioso, vivo numa batalha intensa dentro de mim. Minha vida quase toda foi assim, sabe? Eu fui pai cedo, queria andar de skate e não tinha talento, descobri a música tarde, tive minha primeira banda com 23 anos. Escrevo desde cedo, mas nunca levei muita fé nisso, minha ansiedade sempre me deixou aceso demais. O meu jeito e a vida que eu tenho, os dois não ajudam muito, mas eu tento ficar um tempo sem beber, um tempo longe de drogas... Como é que diz aquele meme? Um pouco de salada e um pouco de droga, é uma balancinha.

MC A maconha te ajuda a ficar menos ansioso?
MD2 Sei lá, não lembro!

MC Você já fez terapia?
MD2 Faço há seis anos. O meu terapeuta veio do mesmo lugar que eu, era DJ também, então acho que encontrei um cara bom. Vou ter uma sessão por vídeo hoje. A terapia me ajudou muito com a ansiedade, com o autoconhecimento. Eu sabia pouco dos meus medos, dos meus ódios e de toda essa ansiedade. Talvez eu esteja tão ansioso porque não fiz terapia essa semana ainda. [Risos]

MC Você vai toda semana, sem falta?
MD2 Vou toda semana. E, quando não consigo, faço por vídeo, que nem hoje. Eu fui pai cedo, tenho quatro filhos, uma família muito desestruturada e, se eu soubesse, teria ido mais cedo.

MC Você recomenda?
MD2 Para todo mundo! Há um certo preconceito em “não preciso de nin-
guém”. Todos precisam de ajuda. Digo coisas para o meu terapeuta que não falo nem pra mim.

MC Como foi sua criação?
MD2 Meus pais se separaram muito cedo, quando eu tinha 9 anos e minha irmã, 4. Minha mãe saía para trabalhar às seis da manhã e deixava a Carla comigo, então eu que dava comida, levava pra escola. Eu me sentia adulto pra tomar decisões, aí fazia merda, né. Minha avó era maranhense, foi trazida pro Rio de Janeiro por uma família de classe média alta com o pretexto de vir estudar, mas aquele sonho de Cinderela acabou quando ela chegou ao Rio e virou empregada doméstica. Com 16 pra 17 anos, ela conheceu meu avô, que era um cara sedutor, mas superviolento, que batia muito nela. Nunca vi ela apanhando e nem me lembro, porque quando ele morreu eu era muito novo. Além das histórias que todo mundo conta, lembro a tensão em volta dele. Minha mãe tinha tanto medo dele que aquilo me afetava também. Esses dias saí pra almoçar com a minha mãe e a agradeci pra caramba por tudo que ela fez pra trazer eu e minha irmã até aqui, com amor e com cuidado. Ela deu muito mais do que recebeu, sabe? É um privilégio ter uma mulher forte que trabalhava em três empregos, era manicure, vendia bijuterias e fazia faxina, uma porrada de coisa pra sustentar a gente. Eu me lembro até da gente sem comida em casa.

MC Ela parece muito importante na sua trajetória. E seu pai?
MD2 Minha mãe me dava uma porrada de obrigações: esquenta a comida, cuidado com o fogo, faz isso, faz aquilo, faz maria-chiquinha. Minha irmã conta que pra fazer chuquinha nela, eu apoiava o pé nos móveis e esticava tanto que ela chegava na escola parecendo japonesa, aí a professora refazia pra ela não ficar com dor de cabeça. A gente foi assim, de uma certa maneira, uma família feliz. Meu pai foi um pouco ausente, mas era um cara do bem. Ele também tinha problemas na família dele. Minha avó paterna morreu no parto da última filha, então meu pai criou seis irmãos, só ele e a mais velha, que foi meio a mãe de todos. Eu consegui entender que essa bagunça toda acaba refletindo em, sei lá, numa estrutura psíquica. Eu fui um adolescente e jovem adulto superviolento até que parei para pensar: “Por que eu brigo tanto?”. A terapia também me ajudou com isso, a entender um pouco da família e a entender um pouco dos privilégios.

MC
Você conversa sobre privilégios com os seus filhos?
MD2 Pra caramba! Falo que a gente tem de ter noção dos privilégios. Meus três mais novos cresceram numa certa condição financeira, sabe? Eu já era o Marcelo D2, então um tá na Nova Zelândia fazendo intercâmbio, todos eles falam inglês bem, todos fazem esporte... Coisa que meus pais não me deram. Nessas últimas eleições vi absurdos dentro da minha própria família: gente cuspindo na história da família toda, sabe? Eu falo: “Não é possível que vocês estão cuspindo na minha avó. Ela veio escrava do Maranhão e vocês tão apoiando um cara que tá cagando pra história dela?”. Eu espero que meus filhos tenham plena consciência dos privilégios pra não cometerem o mesmo erro.

MC
Eles te escutam?
MD2 Converso de igual pra igual, mas a última palavra é minha. Tem uma história engraçada que minha filha, quando tinha uns 16, 17 anos, ficou de castigo. Aí as amigas: “O Marcelo D2 te botou de castigo?”, e riram. Ela disse: “O Marcelo D2 não, ele fuma comigo, mas o Marcelo Peixoto é bravo”.

MC Sua primeira droga foi um baseado? Já usou outra coisa?
MD2 Minha primeira droga, como todo mundo, foi o álcool. Não lembro quando comecei a fumar maconha, só lembro que eu jogava bola e tinha uma galera que ficava no fundão do campo. Eram os malucos mais velhos que paravam lá pra jogar bola e fumar um. Aí, um dia, quando me vi, tava fumando com eles. Se eu já usei alguma outra coisa? Já usei tudo. Todas as drogas, to-das!

MC Em um trecho de Amar é para os fortes você diz que “escolhas foram feitas, não é só questão de sorte”. Você é resultado de quais escolhas?
MD2 Todo mundo tem escolhas. Eu entendo, por exemplo, quem vai pro crime, quem pega numa arma, eu entendo o ódio deles, mas não concordo. Posso falar de um grande amigo meu, Carlos Peixe. A gente tem famílias totalmente diferentes, tá ligado? O Peixe morreu com 17 anos assassinado numa viela, e fez as escolhas dele. Entendo o lugar de que ele veio, a família muito mais desestruturada que a minha. Ele morava numa parte da favela que tinha chão de terra, era o chão do barraco dele. Lembro que a gente tinha 10, 11 anos, eu ia dormir lá na casa dele e a mãe dele chegava bêbada com algum cara e ia transar do nosso lado. A gente ouvia aquela porra e eu fingia que tava dormindo pra não constranger mais ele. É lógico que isso cria um ódio fodido, mas ele fez as escolhas dele, ele que resolveu trocar tiro com todo mundo até tomar tiro, isso são escolhas. Ele tinha aquele discurso: “Você é um cara bom, eu sou mal”, mas não existe isso, tá ligado? Não existe gente boa e má, isso não é uma novela da Globo, todo mundo tem um lado bom e um lado ruim.

MC Você acredita em meritocracia?
MD2 Isso aí é outra história. Acho que quando se fala em meritocracia, você quer igualar numa situação em que existe desvantagem. Quando a gente botar todo mundo num nível igual de vantagens e de oportunidades, aí tudo bem. Mas esse tipo de meritocracia não existe, é um jogo injusto.

MC Então nem sempre é questão de escolha.
MD2 Não, o que eu estou falando é outra coisa. Escolha é você escolher o que quer fazer, mas oportunidade é outra coisa, entendeu? Esse tipo de meritocracia que você está falando, é você ir fazendo e acontecendo. Eu e você não vamos ter a mesma oportunidade, somos pessoas diferentes, você é mulher, eu sou homem, eu vim de um lugar, você vem de outro. E a vida não é feita só de oportunidades profissionais, a gente pode ser muito feliz sem trabalhar. Essa coisa de que todo mundo tem de ter televisão de plasma, ganhar dinheiro e ter um apartamento, isso não é felicidade, isso é um sonho americano, é besteira. A gente pode viver uma vida boa de outro rolê.

MC
Você se destacou bastante durante as eleições, quase como um “herói da esquerda”. Você se considera referência?
MD2 Primeiro que não me acho esquerdista, me considero humanista. Achei muito necessário como ser humano, como cidadão, lutar por essa porra [valores humanitários], tá ligado? Eu tenho quatro filhos. Tenho esperança? Não, não tenho esperança. O mundo melhor é quase impossível dentro da minha cabeça, mas não vou me entregar, entendeu? O que as pessoas chamam de conservadorismo, eu chamo de atraso. Eu acho que as minorias – gays, negros, pobres, mulheres – sempre vão ter de acordar e reconquistar seus direitos. Bater o pé, ir lá e falar: “Eu tô aqui, sou uma pessoa nesse mundo, você não vai fingir que eu não existo”. A gente vai ter de conquistar isso todo dia. É inaceitável que tudo que já foi conquistado volte atrás. É inaceitável que a gente comemore o golpe de 64. É inaceitável que, em 2019, a gente tenha tanto desprezo pela vida humana.

MC Você fica bem abatido quando fala disso.
MD2 Pô, eu estou dando entrevista há dois dias e toda vez, quando toco nesse assunto, fico com um nó na garganta. Eu realmente sofro. Escolhi fazer isso para minha vida, sabe? Achei um lugar no mundo em que posso ser uma voz que as pessoas me deram... “Vai lá, Marcelo D2, fala pela gente.”

MC
Você enxerga algum culpado pela ascensão desse conservadorismo?
MD2 Dizem que a esquerda permitiu que isso acontecesse, mas é uma besteira fodida! Gente falar que vai virar fascista porque a esquerda errou. “A gente vai começar a matar mais negros porque a esquerda errou, a gente vai matar mais homossexuais no país que mais mata homossexuais no mundo porque a esquerda errou, a gente vai continuar matando mulher porque a esquerda errou”, pelo amor de Deus, né, cara! Inventa outra história, porra, que discurso vazio! A culpa não é desses 500 anos de abandono, de escravidão, de controle dos corpos de favela, de opressão. A cada 15 minutos morre um jovem negro no Brasil, cara. Imagina se tu é negro num país que nem esse? Tem uma mira apontada pra tua testa. Daqui a 15 minutos pode ser eu, boom! A gente não pode jogar tudo pro alto e dar voz pra um filho da puta desses que nem o Bolsonaro, desculpa o meu francês.

MC No encarte do seu novo álbum, você diz que o nome Amar é para os fortes surgiu numa conversa séria de bar. Como foi isso?
MD2 É. Na verdade, foi uma coisa terrível. Uma amiga minha foi assassinada num assalto, tomou um tiro na cabeça. Ela era dona de um restaurante ali no Rio e, durante o velório, a Cissa Guimarães leu um texto lindo do João Velho que tinha essa frase. Na hora que eu ouvi essa frase do João... Eu tava bem cansado, não queria fazer mais música, achava que já tinha falado tudo o que eu tinha pra falar... Mas quando ouvi essa frase, cara, “amar é para os fortes”, a sensação veio dentro de mim, sabe? Entendi o disco inteiro ali, vi o quanto era subversivo falar de amor neste momento. Essa frase tem um sentido amplo de amor ao próximo, a si mesmo, de se cuidar, de cuidar do outro, de ser generoso, de compartilhar.

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Tópicos: mulher, discurso, marcelo