Maria Bethânia acende a festa no terreiro do Brasil em luminosa live de aura política

14/02/2021 13h51


Fonte G1

Imagem: REPRODUÇÃOClique para ampliarMaria Bethânia acende a festa no terreiro do Brasil em luminosa live de aura política(Imagem:REPRODUÇÃO)

“Por onde eu andar, meu canto vai na frente anunciando o meu lugar”, demarcou Maria Bethânia, ao dar voz a versos do inédito samba De onde eu vim (Paulo Dáfilin), novidade do roteiro da primeira live da artista.

Há um ano fora dos palcos, Bethânia voltou à cena na noite de sábado, 13 de fevereiro de 2021, com show inédito transmitido da cidade do Rio de Janeiro (RJ) para o mundo virtual através da plataforma Globoplay.

De contorno biográfico, o samba De onde eu vim integra o repertório do ainda inédito álbum Noturno, previsto para ser lançado pela cantora entre março e abril. Ao cair no samba do compositor e violonista paulista Paulo Dáfilin, um dos quatro músicos arregimentados para a primeira live de Bethânia, a intérprete louvou mais uma vez a Bahia natal.

A Bahia foi o ponto de partida das andanças dessa artista que entrou em cena em 1963, em Salvador (BA), e aportou no Rio de Janeiro (RJ) em 1965, aos 18 anos, pronta para cantar no Opinião, teatralizado show de tom engajado em que Bethânia estreou em fevereiro daquele ano de 1965, não no dia 13, data propagada na narrativa romanceada da memória da artista (a rigor, a estreia de Bethânia no Rio para o público pagante aconteceu em 12 de fevereiro e, antes, houve apresentação para convidados).

Elevada involuntariamente ao trono de “cantora de protesto”, Bethânia rejeitou rótulos, recusou movimentos – como o convite do mano Caetano Veloso para endossar a Tropicália entre 1967 e 1968 – e permaneceu fiel a si mesma.

E o que o Brasil viu na noite de sábado, na transmissão feita sob direção artística de LP Simonetti, foi mais uma amostra da fidelidade de Maria Bethânia à natureza da alma incorruptível e do canto magnético da intérprete – inclusive se dando o direito de fazer live de aura política.

“Eu quero vacina, respeito, verdade e misericórdia”, marcou posição, logo no início do show, após cantar Explode coração (Gonzaguinha, 1978) a capella.



Com roteiro que agregou números de espetáculos anteriores da artista, mas com costura inédita, a live de Maria Bethânia adquiriu muitas vezes um tom político, seja na opção por ecoar O canto do pajé (Heitor Villa-Lobos, 1933, com letra de Paula Barros) – adentrando o ora desvalorizado Brasil de dentro, caboclo, índio, também mapeado em Kirimurê (J. Velloso, 2006) – seja denunciando recente tragédia social dessa nação preta e racista ao dar voz a 2 de junho (Adriana Calcanhotto, 2020), assimétrica canção sobre a morte do menino negro Miguel Otávio (2014 – 2020), filho de empregada doméstica, por negligência da patroa branca, Sara Côrte Real.

Com voz posta em defesa do povo oprimido pela casa grande, Bethânia adicionou intensidade aos versos narrativos e indignados de Adriana Calcanhotto com arranjo evocativo das dissonâncias da gravação original da autora.

Dentro da triste realidade desse Brasil que vem desafinando, Bethânia conferiu atualidade aos versos imperativos de Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973). Foi mais um protesto inteligente dessa cantora que faz amor, festa e devoção quando sobe ao palco.

Com fidelidade à alma musical dessa Bethânia brasileirinha, mestiça, a artista acendeu a festa no terreiro do Brasil ao louvar as águas e margens do Rio São Francisco quando apresentou Lapa santa, música inédita de Paulo Dáfilin e Roque Ferreira, originalmente intitulada Véio Chico pelos compositores.

Rebatizada pela intérprete, Lapa santa integra o repertório do vindouro álbum Noturno, assim como Luminosidade, música apresentada por Bethânia no show Claros breus (2020) e composta pelo mesmo Chico César de quem Bethânia reverberou Estado de poesia, música que a cantora lançou há nove anos no show Carta de amor (2012).

“Luminosidade / Da idade que é a vida / Da candeia acendida / No coração do espaço”, dizem os versos do poeta na canção dedicada por Bethânia a Caetano Veloso e sugerida pela intérprete para a voz luminosa do sobrinho, Zeca Veloso, filho de Caetano.

Com o canto sempre na frente (a ponto de ofuscar a presença do excepcional violonista João Camarero na banda regida pelo baixista Jorge Helder e valorizada pela percussão de Marcelo Costa), Bethânia expiou a saudade do Carnaval com o canto do Frevo nº 2 do Recife (Antônio Maria, 1954), verteu Lágrima (Roque Ferreira, 2006) em tom delicadamente vingativo, saudou Dorival Caymmi (1914 – 2008) ao destilar o mel verdadeiro de Doce (Roque Ferreira, 2008), celebrou a liberdade de ter afetos em muitos portos ao dar voz à festiva canção lusitana Meu amor é marinheiro (Alan Oulman sobre versos de Manuel Alegre, 1974), valorizou os tempos de cantoria em boates cariocas – simbolizados pelas lembranças de Bar da noite (Bidu Reis e Haroldo Barbosa, 1953) e Lama (Aylce Chaves e Paulo Marques, 1952) – e ofertou ao público virtual, de quem afirmou sentir falta, os sucessos sempre esperados nos shows da artista.

Entraram em cena Olhos nos olhos (Chico Buarque, 1976), Gostoso demais (Dominguinhos e Nando Cordel, 1986), Onde estará o meu amor? (Chico César, 1996) e Negue (Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos, 1960), samba-canção que a intérprete tomou para si ao regravá-lo no consagrador álbum Álibi (1978).

Contudo, Bethânia nunca se deixou limitar pelas obrigatoriedades dos roteiros de greatest hits e, por isso e até nisso, foi fiel a si mesma na seleção do repertório da live.

Entre récitas de textos e de versos Clarice Lispector (1920 – 1977), Fernando Pessoa (1888 – 1935) e Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 –2004), Bethânia cantou a Balada de Gisberta (Pedro Abrunhosa, 2007), como a lembrar de que o mundo é, como sentenciou a poeta portuguesa, “Lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece”.

Inquebrável parece ser somente, pelo doce mistério da vida, o canto grave, teatral e já maturado de Bethânia, a cantora senhora de si que deu a Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962), que balançou ao som de Vento de lá (Roque Ferreira, 2007) e Imbelezô (Roque Ferreira, 2004), a que entrou na roda para cantar pot-pourri de sambas do Recôncavo Baiano, entrelaçados com Reconvexo (Caetano Veloso, 1989).

No arremate do show, com Sonho impossível (The impossible dream, Mitch Leigh e Joe Darion, 1965, em versão em português de Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972) e O que é o que é (Gonzaguinha, 1982), samba ressignificado em tempos pandêmicos em que é preciso louvar a vida, ficou a certeza de que, por onde Bethânia andar, o canto da artista vai sempre na frente, com a nobreza capaz de harmonizar tema de Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) com canção propagada nas vozes sertanejas de Chitãozinho & Xororó, Evidências (José Augusto e Paulo Sérgio Valle, 1989).

Com amor ao canto e devoção ao sagrado, Maria Bethânia acendeu a festa no terreiro do Brasil em luminosa live de aura política e de perfeito acabamento técnico e artístico.

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