O Menino Azul: como pintura do século 18 se tornou símbolo do orgulho gay

13/02/2022 13h02


Fonte G1

Imagem: ReproduçãoUma fila com número recorde de visitantes formou-se em janeiro de 1922 no lado externo da Galeria Nacional, em Londres, mesmo com tempo chuvoso, para ver um único quadro: O Menino(Imagem:Reprodução)
 Uma fila com número recorde de visitantes formou-se em janeiro de 1922 no lado externo da Galeria Nacional, em Londres, mesmo com tempo chuvoso, para ver um único quadro: O Menino Azul, do artista britânico Thomas Gainsborough.

A obra de arte havia sido comprada no ano anterior por um colecionador norte-americano, e sua partida iminente levou 90 mil pessoas a dar uma última olhada no que a imprensa havia chamado de "a pintura mais bela do mundo".

Um artigo no jornal "London Times" defendeu que O Menino Azul exemplificava a "graça gentil e a postura serena de um povo que sabia que era um grande povo e não se envergonhava disso".

Para a população em geral, o Menino Azul de Gainsborough era o protótipo da alta cultura e do nobre caráter britânico.

Em janeiro de 2022, o Menino Azul voltou para Londres depois de cem anos e está sendo novamente exibido na Galeria Nacional, onde ficará exposto por cinco meses.

Mas quantos visitantes conhecem hoje em dia a longa caminhada da pintura como símbolo do orgulho gay?

Valerie Hedquist, professora de História da Arte da Universidade de Montana, nos Estados Unidos, escreveu extensamente sobre o quadro e seu papel como ícone da comunidade gay.

Em parte, esta é uma história de consequências imprevistas e de como os artistas perdem o controle das suas criações depois que elas entram para o imaginário coletivo.

Hedquist contou à BBC que, quando Thomas Gainsborough pintou O Menino Azul, em torno de 1770, "ele era mais uma obra de demonstração para exibir os seus talentos".

Acredita-se que o menino seja o sobrinho do artista, Gainsborough Dupont, em vestes aristocráticas do século 17, em homenagem a Sir Anthony van Dyck — um artista cujas técnicas e composições eram admiradas por Gainsborough.

Em 1770, a pose do Menino Azul teria sido interpretada pelas pessoas como nobre, sinalizando um exemplo de futuro marido e pai.

Ele está de pé em posição de autoridade conhecida como contrapposto, muito utilizada na arte clássica.

O cotovelo saliente é outra pose muito empregada nos retratos da arte europeia, descrita pela historiadora Joaneath Spicer como "indicando essencialmente arrojo ou controle — e, portanto, o autodefinido papel masculino".

Mas, para Hedquist, a ideia de que o menino da pintura está vestindo uma fantasia e representando é fundamental para suas reavaliações posteriores. Segundo ela, "o Menino Azul é um convite à representação".

Esse processo começou no palco no século 19, com a representação do "Pequeno Menino Azul" em peças de teatro pantomimas, frequentemente vestido com as sedas, bermudas e colarinho de rendas do Menino Azul de Gainsborough. E esse personagem era frequentemente representado por atrizes.

Este, segundo Hedquist, foi o início da "feminização" do Menino Azul. "No final do século 19", explica ela, "as revistas ficaram repletas de ilustrações de meninas vestidas como o Menino Azul".

Em 1922 — ano em que a pintura de Gainsborough ganhou um novo lar nos Estados Unidos —, Cole Porter apresentou seu musical Mayfair and Montmartre, com Nelly Taylor vestida como o Menino Azul surgindo teatralmente de uma moldura e cantando uma música chamada Blue Boy Blues.

Marlene Dietrich também se vestiu como o Menino Azul para uma comédia teatral em 1927, enquanto Shirley Temple fez o mesmo para o filme Curly Top (A Pequena Órfã, no Brasil) em 1935.

A pintura havia criado uma plataforma para ofuscar a identidade de gênero. O Menino Azul podia ser masculino ou feminino no mundo fluido das apresentações teatrais.

Para Hedquist, outra dimensão da história envolve o escritor irlandês e líder do Movimento Estético, Oscar Wilde. Wilde vestia-se com roupas extravagantes com inspiração histórica, frequentemente com bermudas, casacos de veludo, mantos e chapéus de abas largas, em homenagem a pintores como Gainsborough.

Em uma fotografia tirada pelo americano Napoleon Sarony em 1882, Wilde apresentou-se na mesma pose do Menino Azul, em elegantes sapatos com fivelas e calças curtas.

Quando Wilde foi preso por ser homossexual, em 1895, ele se tornou o mais famoso homem assumidamente gay do mundo — e suas fotografias, tiradas por Sarony, foram proibidas.

Segundo Hedquist, "elas acabaram nos primeiros livros médicos que ensinavam às pessoas como reconhecer a homossexualidade".

Estava enraizada uma visão brutal e intolerante da atração pelo mesmo sexo, com base, em parte, nas "indicações" visuais estereotipadas do Menino Azul.

Depois que o Menino Azul chegou aos Estados Unidos, ele ficou famoso e apareceu em cerâmicas, tecidos e milhares de reproduções impressas. A forma como ele foi interpretado no seu novo país também ficou sujeita aos ventos das mudanças culturais.

Hedquist conta que um episódio formador dessa interpretação foi o chamado "terror lilás", nos anos 1950, que fez com que homens e mulheres gays fossem considerados ameaças à segurança nacional e perseguidos nos órgãos governamentais.

Estereótipos comuns de comportamento gay — que hoje são motivos de risadas pela sua ignorância — como punhos com rendas e sapatos extravagantes eram mencionados como indicadores dos "inimigos internos".


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