Quadrinho conta a história da escrava Esperança Garcia, primeira advogada do Brasil

03/07/2023 22h20


Fonte G1 PI

Imagem: ReproduçãoHQ HQ "A Voz de Esperança Garcia" foi lançado em 24 de junho, em Teresina.

O escritor piauiense João P. Luiz lançou, em junho deste ano, a história em quadrinhos (HQ) de Esperança Garcia, escravizada reconhecida como a primeira mulher advogada do Brasil e considerada um símbolo na luta por direitos. Nesta segunda-feira (3), Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, o autor contou detalhes sobre a obra.

“O quadrinho é uma mídia democrática, acredito muito que consegue chegar onde um livro não chegaria. Então eu quis levar a história para outros grupos sociais. Pensei que pessoas negras, pessoas da periferia também poderiam conhecer a história da Esperança", contou.

Intitulada “A Voz da Esperança Garcia”, a HQ é realizada em parceria com o quadrinista Bernardo Aurélio. O objetivo da dupla é, com a obra, atingir públicos diversos, entre eles o infanto-juvenil, e repercutir a trajetória de luta de Esperança Garcia e de outras mulheres negras contra o racismo e sexismo.

"Estamos falando de uma mulher escravizada em 1770, que, por vontade própria, escreveu uma petição. Essa relação violenta do branco europeu com o escravizado no Piauí colonial, quebra o paradigma de que os escravizados aceitavam tudo facilmente. Esperança não aceitou, mostrou que poderia lutar pelo que acredita. Toda essa mensagem é muito poderosa", disse João P. Luiz.

Durante os dias 29 de junho a 1º de julho, na 2° Feira Literária de Barra Grande, em Cajueiro do Praia, Litoral do Piauí, estudantes de escolas públicas municipais e estaduais foram contemplados com exemplares gratuitos da obra.

“A gente quis fazer um quadrinho que todo público pudesse ler, é um quadrinho livre. A gente tentou fazer um traço cartoon, simpático, para diminuir um pouco a dureza do tema. Não diminuir o problema da Esperança, mas tornar o quadrinho mais acessível, sem censura”, completou o quadrinista Bernardo Aurélio.

A coordenadora do Memorial Esperança Garcia, Antônia Aguiar, destacou a importância de lembrar a trajetória de luta de mulheres negras contra o racismo e sexismo.

"Tem outras mulheres negras que fizeram história nesse estado, nesse país e no mundo. Temos a representatividade de Francisca Trindade, Jacinta Andrade, várias outras. Mas Esperança Garcia é um grande símbolo", comentou.

Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial

O Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial foi escolhido em 1951, quando o Congresso Brasileiro aprovou a Lei n.º 1.390, que inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele.

A legislação define, atualmente, que qualquer comportamento ou fala de distinção, exclusão, restrição ou preferência por determinada raça, nacionalidade, ascendência, cor ou ética é considerado discriminação racial.

Quem é Esperança Garcia

Segundo pesquisadores, Esperança nasceu na fazenda Algodões, propriedade localizada em Oeiras, então capital do Piauí, e que pertencia a padres jesuítas brasileiros. No local, ela aprendeu a ler e escrever. Quando completou 16 anos, Garcia casou-se e teve seu primeiro filho.

Contudo, logo depois, os catequistas foram expulsos pelo diplomata português Marquês de Pombal e a fazenda foi transferida para outros senhores de escravo. Aos 19 anos, Garcia foi separada dos filhos e do marido, e enviada para outras terras.

Com o intuito de ser resgatada e encontrar a família novamente, Garcia denunciou as situações de violência que sofria ao Governo do Piauí. As denúncias foram feitas uma carta, datada em 6 de setembro de 1770. O documento solicitava o resgate do grupo.

"Sou escrava da administração do Capitão Antônio Vieira de Couto. Ele me tirou da Fazenda dos Algodões, local onde vivia com meu marido para trabalhar de empregada doméstica. Aqui não passo bem. O primeiro dos grandes sofrimentos é que meu filho sofreu muitas pancadas e é apenas uma criança. Chegaram a tirar sangue dele pela boca. Já comigo, não consigo nem explicar, mas para eles pareço um saco de pancadas, tanto que caí certa vez de cima do sobrado. Só escapei pela misericórdia de Deus. Já a segunda é que estou com meus pecados para confessar há três anos e mais três filhos para batizar. Peço, pelo amor de Deus, que olhe por mim e peça ao procurador para que me mande de volta para a casa de onde me tiraram do lado do meu marido e da minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia".

Atualmente, sabe-se que o pedido de Esperança Garcia foi atendido. Uma lista com o nome de 18 escravizados que viviam na Fazenda de Algodões em 1778, foi encontrada por historiadores. Entre os listados está Inácio, um homem negro de 57 anos, marido de uma escravizada trinta anos mais jovem, chamada Esperança. A relação indica que o casal possuía sete filhos.

Documento é um marco
Imagem: Arquivo PessoalDossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito.(Imagem:Arquivo Pessoal)Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito.

A carta foi localizada no arquivo público do Piauí em 1979, pelo historiador Luiz Mott. Em 1999, após reivindicações do movimento negro piauiense, o dia 6 de setembro foi oficializado como o Dia Estadual da Consciência Negra.

Em 2017, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI), publicou uma pesquisa intitulada “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito”, destinada a fundamentar a solicitação de reconhecimento simbólico de Esperança Garcia como advogada.

O documento é considerado uma petição, pois apresenta elementos jurídicos importantes, como endereçamento, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito e um pedido de socorro.

Em 25 de novembro de 2022, o Conselho Pleno da OAB reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada brasileira.

Homenagens

No Piauí, espaços de sociabilidade e centros de acolhimento às mulheres, ganharam o nome de Esperança Garcia, como forma de homenagem e valorização da luta e resistência da escravizada.

Memorial Esperança Garcia

O Memorial Esperança Garcia, localizado na avenida Miguel Rosa, no Centro de Teresina, foi inaugurado em 2007. Na ocasião, foi chamado Memorial Zumbi dos Palmares. Em 2017, quando a OAB-PI reconheceu Garcia como a primeira mulher advogada piauiense, o local foi renomeado.

O espaço, administrado pela Secretaria Estadual de Cultura, é dedicado para eventos que resgatam e celebram a cultura de povos de matrizes africanas. No local, diversas personalidades negras são retratadas.

Central de Artesanato Mestre Dezinho

Uma escultura de Esperança Garcia integra o acervo da Central de Artesanato Mestre Dezinho, localizado no Centro de Teresina. A obra foi produzida em barro, em tamanho real.

Também em Teresina, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher Esperança Garcia (CRAM), que oferece apoio psicológico, social e jurídico para mulheres em situação de violência, e o auditório da Faculdade Adelmar Rosado levam o nome da advogada. Em Nazaré do Piauí, existe a Maternidade Esperança Garcia.