Camilo Santana no Ministério da Educação: como Ceará se tornou referência na área
26/12/2022 09h00Fonte BBC News Brasil
Imagem: Getty ImagesA fórmula de Sobral apoiou-se em pilares como a autonomia das escolas e a concentração de alunos em unidades maiores com mais recursos.
A cearense Yasmin Kelle da Silva Garcia acaba de concluir o 9º ano da Educação Fundamental. Aos 15 anos, a aluna tem propósito definido: concorrer a vagas em três escolas diferentes de Ensino Médio em Sobral, Ceará.
Apesar de a pandemia do novo coronavírus ter levado à suspensão das aulas presenciais durante o 7º ano e a maior parte do 8º, Yasmin não apresentou queda de aproveitamento e obteve aprovação integral. O desempenho não surpreendeu a família da estudante. Ao ingressar na Educação Fundamental, aos seis anos, vinda da Creche Municipal Jacira Pimentel Gomes, Yasmin já era capaz de ler pequenos textos, além de praticar dança, ballet e capoeira.
A meta da aluna é frequentar, a partir do próximo ano, um dos três cursos profissionalizantes (Técnico em Enfermagem, Finanças ou Logística) oferecidos pelas instituições de Sobral.
"Cada milésimo no seu boletim vai fazer diferença", disse-lhe a mãe, Tamires Ripardo da Silva, que acompanhou de perto todo o percurso escolar da filha.
A cozinheira Tamires, 32 anos, e o motorista Francisco Aristides Ferreira Garcia, 40, frequentaram a mesma Escola Municipal Senador Carlos Jereissati da qual a filha é egressa. Recém-inaugurado, o colégio era considerado modelo na época em que o casal passou por suas instalações.
No restante da rede de ensino de Sobral, porém, a realidade era distinta. Mais da metade dos alunos do município que terminavam a 2ª série da Educação Fundamental (equivalente ao atual 3º ano) no final do século 20 não sabia ler. Reeleito prefeito em 2000, Cid Gomes (então no PPS) pôs em marcha uma reforma que, 14 anos mais tarde, elevou Sobral ao primeiro lugar do ranking de municípios do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
O modelo de Sobral foi estendido a todo o Ceará pelo próprio Cid, governador por dois mandatos pelo PDT de 2007 a 2015, e transformou o Estado em vitrine nacional em Educação Básica. A repercussão da experiência fez com que dois sucessores de Cid, Camilo Santana (PT) e Izolda Cela (sem partido), mantivessem e aprofundassem a receita em suas gestões.
Raro exemplo de continuidade de política pública no Brasil, as realizações do Ceará cacifaram Camilo e Izolda a ocupar, respectivamente, o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Básica no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2015, o próprio Cid havia tido passagem relâmpago pela pasta no governo da presidente Dilma Rousseff.
Imagem: André Borges/EPA-EFE/REX/Shutterstock Camilo Santana (PT) foi anunciado como ministro da Educação do próximo governo Lula.
Os números do Ceará em matéria de alfabetização e combate à evasão escolar impressionam. Com 9 milhões de habitantes, o Estado é o nono mais pobre do país. Na contramão dos dados econômicos, de cada cem estudantes que ingressam na escola no Ceará, 91 concluem o Ensino Fundamental 1 (1º ao 5º ano) aos 12 anos, 91 finalizam o Ensino Fundamental 2 (6º ao 9º anos) aos 16 e 73 completam o Ensino Médio aos 19 anos.
No Brasil, de cada cem alunos, os que completam essas mesmas etapas são 93, 82 e 69, respectivamente. Os números são do Anuário Brasileiro da Educação Básica referente a 2020. De acordo com o Ideb de 2022, 87 das cem melhores escolas públicas brasileiras dos anos iniciais da Educação Fundamental estão no Ceará. A fórmula de Sobral apoiou-se em quatro pilares: escolas com autonomia administrativa e financeira, concentração de alunos em unidades maiores com mais recursos, investimento em formação e capacitação de professores e avaliação.
A primeira medida foi implementada por meio da criação do Fundo para o Desenvolvimento Autônomo das Escolas (Fundae). "A gente percebeu que as escolas precisavam ser unidades fortes e que o diretor precisava ter legitimidade. Antes, era o vereador que indicava o diretor da escola. Implantamos um processo seletivo sério e consistente para diretor e coordenador pedagógico", afirma Joan Edesson de Oliveira, mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará e consultor que participou da implantação do fundo.
A prefeitura reduziu o número de unidades escolares de 96 para 38. "Algumas escolas tinham duas salas de aula e um banheiro. Com a diminuição, foi possível dar condições e transporte", argumenta Oliveira. Foram criadas uma escola de formação para professores e uma superintendência de gestão encarregada de monitorar o desempenho das escolas.
"Partíamos do princípio de que quanto maior fosse a autonomia, maior deveria ser o acompanhamento. Foi implantada uma avaliação externa duas vezes por ano", explica o consultor. Ao chegar ao governo do Ceará, em 2007, Cid nomeou a ex-secretária de Educação de Sobral Izolda Cela para a pasta estadual. Oriunda de ilustre família sobralense, psicóloga e professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú, Izolda tinha sido responsável pela reviravolta educacional no município. O governo estadual lançou o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) com o objetivo de estender as inovações de Sobral a todo o Estado.
A fim de estimular a adesão dos prefeitos ao sistema, vinculou a maior parte do repasse da parcela do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) à comprovação de desempenho escolar. O sistema previa também repasse financeiro a escolas com base em número de alunos matriculados. "Um pai me disse: Tenho três filhos. Os mais velhos aprenderam a ler com 12 e com 13 anos, e eu achava normal. Agora, com o terceiro, descobri que a criança pode saber ler aos sete", relata Oliveira, que, como consultor do Paic, visitou mais de cem dos 184 municípios cearenses.
Questionado sobre as razões da eficácia do sistema cearense, o prefeito Ivo Gomes (PDT) resume: "Não tem segredo. O que se faz em Sobral e no Ceará é a aplicação do bom senso". Ele atribui ao antecessor Cid (de quem é irmão, assim como o ex-candidato à Presidência Ciro Gomes) a responsabilidade política pelas mudanças. "Sem a liderança do prefeito nada se faz. A geração dele (Cid) é muito incomodada com o fracasso da escola pública", afirma.
A principal medida, afirma o prefeito, foi a "remoção da politicagem partidária-eleitoral no recrutamento das protagonistas, porque são muito mais mulheres do que homens". Esse processo resultou na seleção de bons diretores, professores e currículos. "Há mais de 20 anos os políticos de Sobral não sabem quem são os diretores de escolas. Nem eu sei. A única pessoa que escolhi foi a secretária de Educação", conclui. Ao comentar a possibilidade de a experiência do Estado ser reproduzida em escala nacional por Camilo e Izolda, o prefeito de Sobral demonstra ceticismo.
"Os dois (Camilo e Izolda) têm compromisso com isso, mas veremos se o PT vai deixar", provoca. Segundo Ivo, a mudança ocorrida no Ceará exige confronto com estruturas de poder locais e estaduais. "O PT tem tradição clientelista, fisiológica, e não de fazer grandes mudanças em educação", critica. Para Maurício Holanda, ex-secretário de Educação do Ceará nos governos de Cid e Camilo, o exemplo cearense não pode ser transplantado automaticamente para a esfera brasileira, mas oferece boas lições ao futuro governo federal.
"Em torno de 40% das crianças de até oito anos sem alfabetização adequada estão concentradas em 10 Estados do Norte e do Nordeste. Essa parcela requer um tipo de estratégia. No Sul e no Sudeste há alunos na mesma situação, mas dispersos. Nesse caso, é necessária outra abordagem", aconselha. Um dos grandes acertos do Ceará, aponta Holanda, foi apostar na colaboração entre Estado e municípios. O próximo passo do governo do Estado nesse terreno terá início no ano que vem, quando entrará em vigor um programa de universalização do ensino de tempo integral na Educação Fundamental 2.
A medida prevê contrapartida financeira aos municípios, com a destinação de R$ 2 mil per capita por matrícula no 9º ano do Fundamental 2 - nos anos seguintes, o repasse será progressivamente estendido às demais séries. "Os jovens do 9º ano estão em fase crítica de construção de identidade social. É quando começa a surgir a vontade de abandonar a escola. Se você pode trabalhar em um clima escolar mais adequado nessa etapa, pode mudar o cenário", explica.
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