Senna, 30 anos - Capítulo 9: a verdade crua e dura da morte do ídolo brasileiro

30/04/2024 10h46


Fonte ge

A doutora Fiandri, abalada, anuncia, no hall central do hospital, às 19h05 local:

- Senhores, Senna está morto.
Imagem: Anton Want/ALLSPORTMédicos prestam os primeiros socorros a Ayrton Senna, após acidente em San Marino.(Imagem:Anton Want/ALLSPORT)Médicos prestam os primeiros socorros a Ayrton Senna, após acidente em San Marino.

Creio ter sido o primeiro, ou um dos primeiros, a chegar no Hospital Maggiore de Bolonha, ao menos dentre os jornalistas que estavam no Autódromo Enzo e Dino Ferrari. Não cruzei com ninguém por longos minutos. O resultado da corrida tornara-se irrelevante diante do real estado de saúde, ainda desconhecido, de Senna.

Não percebi nada de anormal no grande hall central do hospital, tudo parecia seu curso normal de um domingo à tarde. Haja vista que fui, sem controle algum, até os elevadores e pressionei o 11º andar, local da Unidade de Terapia Intensiva (UTI), identificada em um painel no térreo.

A única manifestação que vi nessa hora foi a de um policial Carabinieri, próximo à principal porta de entrada. Alguém havia acabado de lhe contar que Senna sofrera um acidente na corrida e o haviam transportado para o hospital. Tinha o chapéu na mão e dizia:

- Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o coração.

Enquanto subia até o 11º andar, me surpreendi pensando que não poderia falhar como jornalista, comprometeria o restante da minha carreira naquilo que tanto me dedicara para conseguir, ou seja, cobrir o Mundial de F1 para a grande mídia brasileira. Cada vez que me lembrava disso ganhava força para deixar de lado minhas emoções.

Parei de pensar também nas reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do acidente de Senna, o que colaborou para eu me controlar.
Imagem: Paul-Henri Cahier/Getty ImagesAyrton Senna dentro de sua Williams, pouco antes da largada do GP de San Marino de 1994.(Imagem:Paul-Henri Cahier/Getty Images)Ayrton Senna dentro de sua Williams, pouco antes da largada do GP de San Marino de 1994.

No Brasil, era domingo de manhã. Lembro-me de ter ligado – atenção, de um telefone público, a cobrar - para os jornais em que trabalhava, Estadão e Jornal da Tarde, além da Agência Estado, a fim de informar ao chefe de reportagem, Castilho de Andrade, que havia deixado o autódromo e já me encontrava no hospital.

Eu pensei comigo: se Senna morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao menos até o embarque do corpo para o Brasil. Eu estava sozinho, seria o responsável por levar aos leitores dos jornais um painel de informações de tudo. Era uma grande responsabilidade.

Isso fez eu me concentrar quase doentiamente no meu trabalho. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital, mas também no autódromo. Era imprescindível ouvir, se falassem, Frank Williams, dono da equipe de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram o projeto do modelo FW16 pilotado por Senna.
Imagem: Dario Mitidieri/Getty ImagesAyrton Senna concentrado antes da largada do fatídico GP de San Marino.(Imagem:Dario Mitidieri/Getty Images)Ayrton Senna concentrado antes da largada do fatídico GP de San Marino.

Médicos realmente profissionais

Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse um mínimo de sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de F1, ídolo em dezenas de países, mesmo na Itália, lutava para viver e os funcionários do hospital continuavam sendo mal-educados, grossos e desinteressados, mesmo com quem falasse em italiano com eles, como eu.

O que faltava de bom senso a essas pessoas sobrava aos médicos deslocados para o atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhuma informação.

Logo proibiram a subida para a UTI. Vim a saber por não ver nenhum outro jornalista, àquela altura, na porta da unidade. Depois autorizaram pessoas próximas a Senna. Falo disso mais tarde.
Imagem: Steve Etherington/EMPICS via Getty ImagesMédicos prestam os primeiros socorros a Ayrton Senna, após acidente em San Marino.(Imagem:Steve Etherington/EMPICS via Getty Images)Médicos prestam os primeiros socorros a Ayrton Senna, após acidente em San Marino.

Entrei já no assunto da conversa com os médicos do atendimento a Senna no capítulo anterior e me estendo mais agora, em detalhes.

O doutor Giovanni Gordini, que prestou atendimento no autódromo e no helicóptero, estava emocionado. Falava em voz baixa comigo, na porta da UTI. Começou a descrever o que vivera naquela última hora.

Choque ao tirar o capacete

- Antes mesmo de retirar o capacete, ficamos impressionados com a quantidade de sangue que o piloto perdia. Alguma artéria havia sido atingida com certeza e minha primeira preocupação era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a hemorragia - disse.

Quem orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Sid Watkins, médico da F1. Mais do doutor Gordini:

- Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o capacete e a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria. Vimos que a base craniana estava aberta e ele perdia massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura que corria por trás das orelhas, de lado a lado da cabeça. Para mim, ele havia batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em alta velocidade. Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa craniana.

Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não havia mais o que fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo. Lembro-me de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo era verdade. Eu estava, literalmente, em choque.

Sabia que Senna estava do outro lado da porta, a não mais de 10 metros, no máximo, de mim, e na condição terrível descrita pelo doutor Gordini.

Me veio à mente que o havia conhecido em uma corrida de kart, em 1978. A revista Quatro Rodas publicou uma reportagem sobre um menino “kartista excepcional”, Ayrton Senna da Silva, e fui, num sábado à tarde, ao kartódromo de Interlagos ver de perto quem era aquele fenômeno.

Não era jornalista, assisti à corrida da arquibancada. Vale a pena um dia eu contar essa história. E agora aquele já homem formado, três vezes campeão do mundo, que eu tanto acompanhei de perto na F1, por vezes como torcedor mesmo, encontrava-se à beira da morte.
Imagem: Dario Mitidieri/Getty ImagesAyrton Senna, concentrado antes da largada no GP de San Marino 1994.(Imagem:Dario Mitidieri/Getty Images)Ayrton Senna, concentrado antes da largada no GP de San Marino 1994.

Nesse instante, passou um cidadão que, educadamente, me informou que os médicos do caso falariam no centro de conferências do hospital, no térreo. Atingido, claro, com tudo aquilo, sem saber direito o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco de anotações e o velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu se comparada aos que uso hoje.

Agradeci a atenção do doutor Gordini com quem, na realidade, mantive mais uma conversa informal do que uma entrevista formal.

Atrás da mesa do centro de conferência ficaram, de pé, os doutores Franco Servadei, Domenico Cosco, Andreolli, neurocirurgiões, Giovanni Gordini, anestesista, e a doutora Maria Tereza Fiandri.

Não há nada que possamos fazer

O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o quadro como o mais traumático possível.

- Não existe uma área específica do crânio que podemos intervir, tudo foi danificado no acidente. O traumatismo é generalizado, bem como os danos a todo o tecido nervoso - explicou.

Entre a minha conversa com o doutor Gordini, no 11° andar, e o início da conferência houve um intervalo de cerca de uma hora. Já havia muitos repórteres no hospital para acompanhar o caso. Na sala de conferência, pude observar até mesmo doentes de pijama, internados, que sabiam da chegada de Senna em estado de emergência. Desejavam notícias.

A consternação pelo anúncio do doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, ídolo de tanta gente, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em questão de horas. Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem para informar o que já apurara e o que viria pela frente.

Como eu teria de escrever um volume respeitável de textos naquele dia, Castilho sugeriu que eu já enviasse o primeiro com o que tinha até então. Achei prudente. Sentei numa das cadeiras da sala de conferência e conectei meu laptop em uma tomada que descobrira ali, próximo da mesa dos médicos, que já haviam deixado o local.
Imagem: Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty Images)Ayrton Senna chega ao hospital após o acidente no GP de San Marino 1994.(Imagem:Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty Images))Ayrton Senna chega ao hospital após o acidente no GP de San Marino 1994.

Comportamento irracional

Nesta hora, apareceu um cidadão da administração, daqueles de mal com a vida citados há pouco, dizendo que não poderia ficar lá. “Vou fechar a sala”, disse, com a maior agressividade pensável. Eu lhe pedi que me desse uns 50 minutos para redigir um texto. Isso em nada alteraria a rotina do hospital. Outros jornalistas também manifestaram a necessidade de trabalhar. Era uma condição excepcional.

Quase sem olhar para nós, o indivíduo foi até o painel de controle de luzes da sala e nos ameaçou, com a mão nos interruptores: se não saíssemos de lá naquele instante desligaria a luz do ambiente. Fechei meu laptop e fui embora.

Fui procurar os doutores Gordini, Salcito e Servadei novamente, que tão gentis se mostraram. Por sorte, encontrei o doutor Servadei numa sala do térreo. Ele me deu mais detalhes:

- A hemorragia que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o voo nós lhe demos volume considerável de sangue.
Imagem: Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty ImagesAyrton Senna sofre acidente fatal em Ímola, em 1994.(Imagem:Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty Images)Ayrton Senna sofre acidente fatal em Ímola, em 1994.

Ele também falou da perda de líquor, líquido cefalorraquidiano existente entre as camadas nervosas, a fim de protegê-las.

- Em decorrência da desaceleração sofrida pelo cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a deformar rapidamente suas feições.

Toda vez que essas camadas são rompidas, o líquor, mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha pelas cavidades que encontra, causando o inchaço de todos os tecidos. Em outras palavras, a cabeça de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.

Vida vegetativa

O doutor Gordini, próximo ao doutor Servadei, contou-me também outra passagem relativa a sua especialidade, como escrevi, anestesista, durante o voo de helicóptero até o Hospital Maggiore:

- Senna teve uma depressão respiratória importante. Nós administramos drogas que reverteram o quadro. Mesmo que ele não tivesse sofrido todos os estragos no cérebro, decorrentes do impacto no muro, só aquela depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido nervoso. Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco oxigênio durante um tempo precioso. Na UTI Senna chegou a ter uma parada respiratória. Nós o reanimamos.

Observe que em nenhum momento os médicos falaram em afundamento do frontal, causado por algum componente do carro que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto.

A investigação criteriosa do acidente revelou que a barra que conecta a manga de eixo da suspensão dianteira direita ao conjunto mola-amortecedor, denominada push-rod, localizada sobre a porção frontal do monocoque, se soltou no choque do Williams no muro da Tamburello e se deslocou na direção do capacete de Senna.

A seguir a barra perfurou a viseira, empurrou a borracha que circunda o recorte do capacete para o piloto enxergar, e pressionou a cabeça do piloto contra a parte de trás do cockpit. Essa compressão causou a fratura da base do crânio, descrita pelo doutor Servadei. A barra atingiu antes a artéria temporal, gerando forte hemorragia.

Recapitulando: pouco antes das 16 horas eu já estava no Hospital Maggiore e conversava com os doutores Gordini, Salcito e depois Servadei na porta do UTI. Às 16h30 a doutora Fiandri anunciou, no centro de conferências do hospital, que o neurocirurgião, doutor Andreoli, ao seu lado junto de outros médicos, falaria sobre o estado de Senna. Ficamos sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era uma questão de horas.

Depois, voltei a falar com os médicos presentes o tempo todo no caso e obtive detalhes do ocorrido. A doutora Fiandri, que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, também nos avisou que só se pronunciaria se tivesse “alguma novidade”.

Às 17h55, ela surge desta vez no saguão principal do hospital, na porta do pronto-socorro, no térreo.

Morte cerebral

A doutora Fiandri estava visivelmente emocionada. Mantinha silêncio absoluto. Uma multidão de repórteres se aproximou para ouvi-la. Não se manifestou até que todos se calassem.

Eu estava do seu lado. Com a voz embargada, a médica afirmou:

- Senhores, o eletroencefalograma de Senna não acusa mais atividade elétrica.

Deu uma pausa. Parecia estar se recompondo:

- Senna tem morte cerebral.
Imagem: Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty ImagesMédicos anunciam a morte de Ayrton Senna, em 1/05/1994.(Imagem: Alberto Pizzoli/Sygma/Sygma via Getty Images)Médicos anunciam a morte de Ayrton Senna, em 1/05/1994.

Saiu em completo silêncio, devagar. Depois a vi falando com a TV italiana.

Os profissionais de imprensa que permaneceram no autódromo, a esta altura, com o fim da corrida, já estavam no hospital. Para a maioria, aquele foi o primeiro contato com os médicos que cuidavam de Senna. A notícia causou comoção em todos. Quem estava lá já sabia que o desfecho do caso seria aquele.


Uma disputa intensa pelos telefones públicos se seguiu. A telefonia celular de longa distância estava apenas começando. Não me lembro de ver alguém com celular na época.

O comunicado da doutora Fiandri informava, no fundo, a morte de Senna. Seu coração continuava batendo, mas não por muito tempo. Vi pessoas chorando, entre eles jornalistas emocionados também. Eu ainda não chorara, talvez por conta daquele preparo a que me submeti, dizendo a mim mesmo que, ao menos enquanto estivesse ali, atrás de informações, mantivesse a situação sob controle. Mas estava abalado, sem dúvida.

Todos nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com nossas bases, para, de novo, informar o andamento das notícias. A doutora Fiandri, por exemplo, disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas ou se “tivesse alguma novidade”. Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto, às 18h05.

A verdade crua e dura

Às 19h05, ela surgiu de novo no hall central do hospital. Não era onde estava Senna, no 11º andar. Com os olhos marejados, claramente havia chorado, falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de dezenas de jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar.

- Senhores, por favor (tempo para respirar fundo). Desde às 18h40 Senna não registra mais atividade cardíaca - afirmou.

Nova pausa. Ninguém se manifesta, silêncio total. A doutora Fiandri sugere ter algo mais a dizer. Já com os olhos cheios de lágrimas, voz trêmula, afirma delicadamente:

- Senhores, Senna está morto.

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