'É impossÃvel descrever a dor', diz modelo sobre circuncisão feminina
03/07/2010 10h12Fonte G1
As histórias são parecidas: sem aviso, as meninas são levadas pelas mães a um local ermo, onde encontram uma espécie de parteira que as espera com uma navalha. Sem qualquer anestesia ou assepsia, a mulher abre as pernas das garotas - muitas vezes, crianças de menos de dez anos - e corta a região genital, num procedimento que varia da retirada do clitóris ao corte dos grandes lábios e à infibulação (fechamento parcial do orifício genital).
Com Waris Dirie não foi diferente. "Desmaiei muitas vezes. É impossível descrever a dor que se sente", disse em entrevista ao G1 a hoje modelo e ativista contra a mutilação genital feminina. Dirie nasceu num vilarejo da Somália e foi circuncisada aos cinco anos.
Após conseguir fugir de um casamento arranjado por seu pai aos 13 anos, ela foi parar em Londres, onde chamou a atenção de um fotógrafo. Dirie se tornou modelo internacional e uma ferrenha ativista contra a circuncisão feminina. Sua história, contada no livro "Flor do deserto", virou filme com o mesmo nome - em cartaz em São Paulo.
Imagem: AFPMenina de quatro anos é circuncisada em Sulaimaniyah, no Curdistão iraquiano, em abril de 2009
"É uma vergonha que uma tortura bárbara, cruel e inútil continue a existir no século XXI". Dirie diz que sempre sentiu que aquilo não estava certo e quando se tornou uma 'supermodelo' pode começar a luta contra a prática. Aos 45 anos, ela é fundadora de uma organização que leva seu nome e embaixadora da ONU contra a mutilação feminina.
Ela mora com a família em uma casa alugada na Etiópia e disse que está tentando convencer a cunhada a não circuncisar as filhas. "Estou confrontando a mutilação na minha própria família. Meu irmão tem seis meninas, todas menores de idade e que vivem no deserto. Minha cunhada quer mutilá-las. Por causa disso eu estou tentando trazer as meninas para um lugar seguro. Isso tira meu sono todas as noites."
Ocorrências
Estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que entre 100 e 140 milhões de meninas e mulheres vivem hoje sob consequências da mutilação - a maioria na África. A organização tem uma campanha contra a prática, que considera prejudicial à saúde da mulher e uma violação dos direitos humanos.
A mutilação ocorre em várias partes do mundo, mas tem registro mais frequente no leste, no oeste e no nordeste da África e em comunidades de imigrantes nos EUA e Europa. Em sete países africanos - entre eles Somália, Etiópia e Mali - a prevalência da mutilação é em 85% das mulheres.
Um estudo da ONG Humans Rights Watch de junho deste ano (clique para ler a pesquisa, em inglês) mostra que, no Curdistão iraquiano, 40,7% das meninas e mulheres de 11 a 24 anos passaram por mutilação.
Uma declaração da OMS de 2008 contra a prática diz que a mutilação "é uma manifestação de desigualdade de gênero, [...] uma forma de controle social sobre a mulher" e que é geralmente apoiada tanto por homens quanto por mulheres. Segundo o texto, algumas comunidades entendem a circuncisão como artifício para reprimir o desejo sexual, garantir a fidelidade conjugal e manter as jovens "limpas" e "belas".
"Não tem nada a ver com religião. Todas as meninas que são vítimas de FGM [mutilação genital feminina, na sigla em inglês] também são vítimas do casamento forçado. A maioria é vendida quando criança a homens mais velhos. Eles não pagariam por uma noiva que não é mutilada. É uma vergonha para nossas comunidades, para os países que permitem a prática. Os homens temem a sexualidade feminina, essa é a verdade", explica Dirie.
E ela não é a única a falar abertamente sobre o assunto. A médica egípcia Nawal El Saadawi, também circuncisada, chegou a ser presa em seu Egito natal após falar do tema e fazer campanha contra a prática. Sua história foi contada no livro "A daughter of Isis" ('Filha de Isis'), e em outros em que aborda a questão feminina nos países do Oriente Médio.
Danos à saúde
A OMS divide a prática em quatro tipos: o tipo 1 é a remoção total ou parcial do clitóris; o tipo 2 é a retirada do clitóris e dos pequenos lábios; o terceiro tipo envolve o estreitamento do orifício vaginal pela criação de uma membrana selante, corte ou aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios (a chamada infibulação); o tipo 4 é qualquer outra forma de intervenção por razão não médica. Os primeiros dois tipos correspondem a 90% das ocorrências de mutilação, segundo a OMS.
De acordo com a ginecologista da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) Carolina Ambrogini, a circuncisão traz riscos imediatos, como hemorragia e infecção. "Não temos registros dessa prática no Brasil. A vagina é uma região muito vascularizada, e há perigo de sangramento intenso, infecção e até de morte. As consequências a longo prazo são um possível trauma psicológico e a perda do prazer na relação sexual."
Os casos de infibulação também trazem riscos durante o parto: segundo um estudo da OMS, a mortalidade de bebês é 55% maior em mulheres que sofreram procedimentos para redução do orifício vaginal.
Polêmica nos EUA
No começo do mês de junho, a Academia Americana de Pediatria (AAP) dos EUA emitiu uma declaração indicando que talvez fosse melhor que os médicos fossem autorizados a realizar uma forma leve de circuncisão feminina nas clínicas americanas do que deixar as famílias enviarem as filhas para os países de origem que realizam o procedimento de maneira rudimentar e sem segurança. O texto gerou polêmica e muitas críticas de organizações de direitos humanos - a mutilação genital feminina é proibida por lei nos EUA - e foi retirado pela AAP.
Em entrevista ao G1 por e-mail, a presidente da AAP, Judith Palfrey, disse que a AAP "é contra todas as formas de mutilação e nunca recomendou a prática. Uma confusão foi gerada a partir de uma discussão acadêmica". A relatora da declaração, Dena Davis, disse que médicos acreditam que algumas meninas estão sendo levadas a países africanos para a realização da prática, embora não haja dados sobre isso. "O objetivo do texto era educar os médicos para tentar orientar as famílias que pedem pelo procedimento."
A última declaração da OMS contra a prática afirma que o trabalho junto às comunidades está tentando reverter o costume e tem obtido sucesso em algumas regiões, apesar da lenta taxa de redução.
"A prática continua porque o mundo não toma nenhuma atitude séria contra isso. nem a ONU nem nenhum outro país do mundo. Encontrei muitos políticos. E ouvi muito blábláblá. Mas não vejo nenhuma atitude séria para acabar com esse crime", protesta Dirie.
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