Esperança Garcia denunciou maus tratos e defendeu direito de ser mãe

11/03/2019 08h04


Fonte CidadeVerde.com

Imagem: DivulgaçãoClique para ampliarEsperança Garcia denunciou maus tratos e defendeu direito de ser mãe.(Imagem:Divulgação)

Documentos datados de 1770 apontam que aos 19 anos, Esperança Garcia, a escrava reconhecida como a primeira advogada do Piauí, travou uma luta pioneira pela dignidade étnico-racial e contra a escravidão no Estado.

Estudos mostram que com uma atitude precoce e ousada, a piauiense cobrou, através do Direito, que as leis vigentes no período concedidas ao escravos, embora precárias, fossem respeitadas. Um ato hoje visto como heróico que torna a escrava um símbolo de resistência na luta por justiça. A personagem histórica ganhou ainda mais notoriedade quando foi lembrada pela escola de samba vencedora do carnaval do Rio de Janeiro este ano, a Mangueira. Ela foi retratada na fantasia da rainha de bateria Evelyn Bastos.

Sobre a história de Esperança Garcia, as pesquisas chegaram ao conhecimento de uma carta escrita por ela e enviada ao governador da capitania de Nazaré do Piauí na época. No documento histórico, a escrava falou sobre os maus tratos que sofria na fazenda em que vivia escravizada e fez alguns pedidos, como para que voltasse a viver com os filhos e o marido. “Sou um colchão de pancadas”, relatou sobre crueldades pelas quais passava. A carta veio a ser considerada a pioneira petição escrita por uma mulher na história do Piauí e em 2017, a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Piauí, concedeu o título simbólico de primeira advogada do estado à Esperança Garcia.

Tal ato de bravura, de acordo com a professora-doutora de Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Sueli Rodrigues, demonstrou o diferencial de atuação da escrava durante o período em que viveu sendo uma mulher à frente de seu tempo. A professora e advogada foi presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra na OAB Piauí de 2016 a 2018, quando organizou o grupo de pesquisa que culminou com a instituição do reconhecimento concedido à Esperança Garcia. A professora conta que a Comissão nasceu para ajudar no processo de reparação às vitimas da escravidão no país.

“Nessa comissão eu convidei historiadores a e gente desenvolveu o projeto Esperança Garcia, que tinha duas comissões, a de História, que o professor Mairton da UFPI coordenava e a de Direito, que eu coordenava. E a gente fez o levantamento das leis regulamentadas naquele tempo em que Esperança Garcia escreveu aquela carta e a conclusão nossa, é que ela fez uma petição, porque as pessoas escravizadas tinham algum direito, não era porque eram escravos que não tinham direito nenhum. Eram direitos inferiorizados, mas tinham direitos. E com base nisso a gente escreveu um dossiê pedindo que a OAB reconhecesse Esperança Garcia como advogada”, esclareceu.

Segundo a professora, há muitas petições históricas denunciando os maus tratos da escravidão, e inclusive pedindo a liberdade de escravos, mas nenhuma em data próxima a que Esperança Garcia escreveu e com caráter denuncista. “O que a gente está considerando é que ela começou, porque não tem nada, nenhum escrito nem próximo da dela, que é datada em 1770. A gente vai encontrar os peticionamentos ao poder público já nas proximidades da abolição, então já depois de 1800. Vamos dizer assim, que ela começou essa forma diferente de lutar contra a escravidão, que é acionando o próprio Estado, reivindicando seus direitos garantidos em lei que não estavam sendo cumpridos”, explica.

Para Sueli Rodrigues, o que mais se destaca na história da negra escrava é a luta por direitos acionando o Estado, dentro do regime escravagista. “Ela elegeu uma outra forma de lutar contra o regime, que é o próprio Direito. Ela traz o Direito para dizer que há garantias e que não estavam sendo observadas e cumpridas. Não há documentos históricos de que ela tenha lutado de outra forma contra o regime”, declara.

O Título

A professora ressaltou que o título, oficializado pela OAB-PI 247 anos depois que a petição foi escrita, em 1770, foi um reconhecimento simbólico. Ela reforça que o documento foi escrito em tom de petição mesmo. “Mas considerando que ela fez uma luta diferenciada contra a escravidão, que ela atuou como sujeito de Direito. Ela atuou como parte daquele Estado e tinha algumas proteções, então ela acionou aquelas proteções. Inclusive a feição da carta é de petição, ela se apresenta primeiro, fala sobre a qualificação, dizendo que é escrava, depois ela diz o que está passando e ela poderia, mas ela não pediu a liberdade, mas pediu aquilo que era possível dentro das ordenações filipinas que eram as leis daquele momento”, explica a professora.

Sueli lembrou que o pedido foi feito ao Conselho Estadual da OAB em 2017 e que o resultado saiu às vésperas do aniversário da Carta, que é de 6 de setembro de 1770. “Não foi no dia 6, mas foi no dia 5 de setembro. A gente assumiu em 2016 e passamos esse ano fazendo levantamentos e no início de 2017 a gente tinha a primeira versão pronta (do dossiê que foi feito sobre a escrava), a gente pediu logo o reconhecimento dela como a primeira advogada”, recorca.

A Petição

Na carta-petição, a escrava escreveu ao governador da época e disse, por exemplo, que estava sem se confessar. Essa era uma garantia que a lei dava aos escravos, conforme Sueli Rodrigues. “Que as pessoas, inclusive os negros, tinham a garantia de que pudessem batizar os filhos e se confessar. Como ela não estava tendo esse Direito garantido, ela apresenta isso. Ela tinha filhos muito pequenos, de três anos, que ainda dependiam dela e ela também apresenta na carta que estava separada deles, que era outra garantia das ordenações filipinas. Então ela pegou o possível e apresentou naquela carta”, diz a professora.

“Ela diz que está separada dos filhos e está junto com as companheiras sem se confessar, mas o centro são os maus tratos, que ela diz que extraiu sangue pela boca, enfim, ela se refere a uma escada e diz que por ter sido jogada peada (presa pelos pés) escada a baixo e diz que o filho dela também sofria maus tratos, que saiu sangue pela boca, alguma coisa assim”, complementa.

Vida de Esperança Garcia

A professora conta que a carta, de 1770, foi o mote das pesquisas sobre a vida de Esperança, mas que alguns registros históricos apontam a existência e o local onde ela trabalhava escravizada. O documento da OAB diz que ela viveu na Fazenda Algodões, no município de Nazaré do Piauí, a 270 km de Teresina, mas Sueli Rodrigues conta que a escrava deve ter sido recambiada para outras fazendas, quando provavelmente foi obrigada a se separar dos filhos. As descobertas também dão conta de que possivelmente ela teve três filho e que foi na época em que morava em uma outra fazenda, quando estava separada dos filhos, que escreveu a carta.

“Aparece o nome dela em um censo na Fazenda Algodões, em que menos de 10 anos depois da carta (petição), ela aparece nesse Censo. Porque ela era escrava de Fazenda Nacional e quem era escravo desse tipo de fazenda podia ou ficava sendo transferido de uma fazenda para outra, dentre as nacionais, e ela reclamou para voltar para a fazenda onde ficaram os filhos dela, que era a de Algodões”,
esclarece.

Não há comprovações e sim suspeitas, segundo a professora, de que ela tenha voltado a viver com os filhos. “A gente não tem essa informação, mas a gente suspeita que sim, porque depois o nome dela aparece num documento antigo que é esse censo e aparecem o nome de crianças com ela. Então, é provável que ela tenha conseguido voltar para a Fazenda Algodões”, afirmou.

Além disso, os lapsos da história não deixam claro como, quando e onde ela faleceu. Pelos achados, há indícios de que Esperança pode ter migrado para a região de Floriano depois de ter sido libertada. “Não se sabia o que tinha acontecido com o povo (escravos) de Algodões. Eu mesma fui lá e todo mundo que está lá na Fazenda é da época de 1940 para cá. Então foi descoberto, o professor Solimar (historiador) encontrou um documento que diz que os ex-escravizados de Algodões foram remetidos para Floriano. Porque o governador da época acabou libertando os escravos antes de 1888, cumprindo a Lei de Sexagenário, que no artigo 2º diz que os escravos das Fazendas Nacionais estão livres, e isso foi na década de 1870, ou seja antes de 1888”.

Ainda segundo Sueli Rodrigues, descendentes da escrava deram origem à cidade de Floriano, a 244 km da capital. “Então foram eles que deram origem à cidade de Floriano e não os árabes como dizem. Quando os árabes chegaram lá já tinha gente trabalhando, que eram os ex-escravos. O que há de descendente de Esperança Garcia, com certeza está diluído no povo negro ali de Floriano”, conclui.

Leia a petição em português atual

“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”

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