'Grito de socorro', diz psicóloga que mudou rotina de presos com a leitura
04/05/2015 08h25Fonte G1 PI
Imagem: Patrícia Andrade/G1Detentos têm até 30 dias para leitura de um livro e depois participar de debate.
Um projeto de leitura recém implantado dentro da Penitenciária Irmão Guido, em Teresina, vem transformando a rotina em pelo menos cinco dos sete pavilhões. Em um ambiente onde grades e algemas limitam os movimentos, os livros têm sido uma ferramenta capaz de promover viagens que ampliam o conhecimento e diminuem o ócio do dia a dia na prisão. A iniciativa partiu da psicóloga Vanessa Moura, após pedido dos próprios detentos.
Imagem: Patrícia Andrade/G1Clique para ampliarVanessa Moura conta que pedido de leitura partiu dos próprios detentos.
Vanessa colocou à disposição dos presos livros do seu acervo, mas já conseguiu atrair várias doações, desde títulos de uma editora espírita a livros que foram dados pela prefeitura e até mesmo por um dos agentes penitenciários.
A atividade consiste no empréstimo de um exemplar por um período de 30 dias e durante esse tempo o detento tem que ler e apresentar uma resenha da história. Desde que a ação começou - em fevereiro deste ano - pelo menos 200 presos já mostraram interesse pela leitura, visto que há 129 na lista de espera por um livro.
“Foi uma demanda apresentada pelos próprios presos nos atendimentos individuais. Foi um grito de socorro! Uns falavam: ‘doutora traz um livro pra mim’ e isso fez com que eu tivesse a ideia de iniciar essa atividade. Também vi aí uma maneira de fazer o atendimento de forma coletiva por achar mais eficiente diante do número de presos que temos aqui”, explicou Vanessa Moura.
Atualmente, a Penitenciária Irmão Guido tem uma população carcerária de 428 presos, quando sua capacidade é para 324 vagas. Do total, 172 são presos do regime provisório e também não deveriam estar entre os detentos já sentenciados pela justiça. O presídio é apenas uma das unidades prisionais do Piauí que apresentam superlotação e estrutura física precária.
Algumas experiências
Em meio a tantos problemas e limitações da vida em cárcere, apresentar aos presos a brasilidade presente na obras de José de Alencar, contos, romances e poesias de Machado de Assis ou até mesmo fábulas clássicas da literatura infanto-juvenil, de Monteiro Lobato, por exemplo, chega a ser um alento e os livros têm diminuído a ansiedade e insônia relatada por muitos deles.
Imagem: Patrícia Andrade/G1Livros são alternativa para vencer a angústia e ansiedade da vida em cárcere.
O G1 teve acesso ao presídio e conversou com alguns detentos que já participam das atividades de leitura. Os nomes marcados com asteriscos foram trocados para preservar as identidades dos presos.
Leonardo da Cruz*, 32 anos, cumpre pena por ter facilitado a fuga de um assaltante. Com 1 anos e 3 meses na cadeia, Leonardo é um dos leitores mais assíduos e até coordena o grupo de leitura em uma das celas do pavilhão lateral. Ele conta que já leu Garibaldi e Manoela (Josué Guimarães); As aventuras de Pedro Malasartes (adaptação de um filme de Mazzaropi) e Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë).
“Encontrei na leitura uma forma de ocupar a mente, fugir das turbulências. Cada livro é uma história diferente, é uma forma de viajar. Quando começo a ler um livro e gosto de cara na primeira página, leio em um dia. Isso tem mudado a rotina no pavilhão”, relata Leonardo.
Marcelo Silva*, 22 anos, cumpre pena por latrocínio, roubo seguido de morte. Ele prefere não tocar no passado e apenas falar nos dias que terá pela frente, dias que para Marcelo passam mais rápido tendo os livros como companhia. Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, foi o que mais chamou sua atenção até agora.
“Acho uma história parecida com a minha porque ela era uma escrava que queria ser tratada da mesma forma que as outras. Aqui a gente tem uma vida atribulada e só queria ter mais oportunidade. Eu quero ser outra pessoa e não vou baixar a minha cabeça”, revela.
“Aqui estamos à mercê do ócio, angústia e sofrimento. Qualquer projeto que vise reeducar e ressocializar é edificante. Eu precisava do cárcere para aprender a valorizar a vida, crescer como sofrimento. Na leitura eu vejo esperança”, ralata João Francisco*, 42 anos, seis deles na prisão cumprindo pena por tráfico de drogas.
Apoio da direção
O diretor da penitenciária Fábio Keyller disse que resolveu apostar no projeto apresentado pela psicóloga e avalia os primeiros meses de atividade como positivos. “É uma forma de inclusão e ocupação para o detento. Vamos reativar outros projetos que estão parados como o de panificação e montagem de calhas de bicicletas que temos em parceria com uma empresa local porque também são atividades voltadas para a humanização”, falou.
Imagem: Patrícia Andrade/G1Clique para ampliarMarcos Furtado, agente penitenciário, fez doações de alguns livros.
Para Marcos Furtado que é agente penitenciário e professor de espanhol, a leitura é importante para um ambiente ocioso e sem as condições mínimas para ressocialização e formação do indivíduo enquanto cidadão. Ele doou várias fábulas para o projeto.
“Trouxe algumas fábulas de linguagem mais acessível porque muitos deles estão tendo o primeiro contato com os livros agora, então não adianta apresentar uma obra rebuscada que eles não vão conseguir interpretar”, disse.
A Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (Sejus) informou que pretende ampliar o projeto e levar para outras penitenciárias do estado. Por enquanto, não há uma lei estadual que garanta a remissão de pena por cada livro lido ou resenha apresentada pelo detento.